(baseado na minha experiência fazendo o Mouse Maze)
Quando Leandro Pires e eu fizemos o pitch do Mouse Maze para a Galápagos, ele não era ainda um jogo de campanha. Era um flip-and-write (quase) comum: você desenha paredes para criar um labirinto cheio de queijos e ratoeiras, e dá ele para seu oponente fazer o pior caminho possível.
Mas nosso editor, Rafael Parma, achava que apesar das inovações mecânicas do jogo, elas não eram evidentes o suficiente à primeira vista para que ele se destacasse nas prateleiras, e por isso sugeriu que transformássemos o Mouse Maze numa campanha: a cada fase, o labirinto teria obstáculos diferentes, aumentando gradativamente a dificuldade até o final.
Interessante? Sem dúvida! Trabalhoso? Com certeza. Mas mais do que tudo, pra nós era um salto no escuro. Posso admitir agora, com o jogo publicado (e apesar do pouco alarde no lançamento, excepcionalmente bem recebido por quem jogou), algo que na época não chegamos a contar pro Parma: nem eu nem Leandro tínhamos nunca completado um jogo de campanha. Cheguei a jogar metade do (burocratíssimo) Charterstone, mas essa era toda a experiência que eu tinha.
Então, toca a aprender do zero como fazer uma boa campanha, e dessa jornada, compilei aqui, para aqueles que pretendem se aventurar por essa deliciosa seara, alguns dos principais desafios e decisões com que nos defrontamos, onde acertamos e onde erramos.
1. Campanha ou Legacy?

Welcome to the Moon é uma campanha, My City é Legacy. Qual modelo seguir?
Primeira decisão: Mouse Maze seria um jogo legacy ou de campanha tradicional? Cada abordagem tem sua vantagem. Legacies têm mudanças permanentes nas regras (adesivos, destruição de componentes), que inviabilizam que cenários anteriores sejam rejogados, mas justamente por isso, têm um grau de suspense e imprevisibilidade maiores.
Como Mouse Maze (e jogos flip-and-write, de forma geral) é um jogo tipo puzzle, poder jogar novamente masterizando as sutilezas do quebra-cabeças que cada desafio propõe é uma parte inerente do jogo. Por isso, apostamos na campanha: queríamos que cada cenário fosse jogado de novo e de novo, mesmo que só depois da campanha completa.
Além disso, fazendo uma avaliação de mercado, a impressão que tenho é que, depois da explosão do Pandemic, jogos Legacy estão em declínio. Apenas os que são derivados de algum jogo já celebrado ganham destaque (Clank, Ticket to Ride, Sagrada).
2. Pontuação da campanha
O caderno de progresso do Mouse Maze
A campanha precisa de uma estrutura que defina como o desempenho em cada cenário contribui para a performance geral dos jogadores.
Sem muita experiência prévia com campanhas,resolvemos estudar as estruturas de outros jogos com as mesmas características do Mouse Maze: partidas curtas, competitivos, jogos família, puzzles. Analisamos Machi Koro Legacy, My City, Welcome to the Moon, entre outros.
Dentre todos, a estrutura simples do My City, um legacy do Reiner Knizia sobre construção de cidades, foi a que pareceu mais adequada ao Mouse Maze: o vencedor de cada partida ganha 2 pontos de progresso, o último não ganha nada, os demais ganham 1. No final da campanha, quem tiver mais pontos de progresso vence.
Adicionamos a ela pontos de progresso extra, que você ganha por completar objetivos específicos de cada cenário, independente da sua pontuação final nele.
3. Campanha competitiva e o risco de ficar para trás
As pontuações abertas do My City: alguém pode ter vencido já com várias partidas de antecedência.
Campanhas competitivas, como seria a do Mouse Maze, têm uma dificuldade extra em relação às cooperativas: é preciso cuidar para evitar que algum jogador fique muito para trás e acabe perdendo o interesse na campanha por não ter mais chances de vencer.
Essa foi a principal crítica do Rahdo ao My City: apesar de adorar o jogo, ao chegar nas últimas 2 partidas, já não havia como sua adversária alcançá-lo, e eles acabaram jogando só para cumprir tabela.
My City tem pontuação aberta e um mecanismo de catch-up sutil demais, que acrescenta árvores (bom) no mapa de quem está perdendo e pedras (ruim) no de quem está ganhando.
No Mouse Maze, preferimos deixar a pontuação oculta, para gerar incerteza sobre o líder, e inserimos um catch-up mais poderoso, no qual você ganha paredes extras para colocar no seu labirinto, dependendo da sua colocação na partida anterior.
Porém, assim como o My City, Mouse Maze é um puzzle com pouca interação. Por isso, em retrospecto, eu teria feito um catch-up ainda mais poderoso para o jogo.
4. Número de cenários
Os 30 cenários do Mouse Maze
Os jogos de campanha têm se dividido entre os mastodônticos, tipo Gloomhaven, com centenas de cenários, e os casuais, que têm cada vez menos.
A lógica é a seguinte: Gloomhaven é um jogo tipo lifestyle, que o mesmo grupo vai jogar por meses a fio. Por isso, quanto mais cenários, mais valor tem no jogo.
Já um jogo de campanha casual, como My City e o Mouse Maze, não é um estilo de vida, e sim mais um entre dezenas de jogos na coleção que as pessoas também querem jogar. Quanto mais longa a campanha, maior o tempo que esses jogadores passam sem jogar outros jogos. Por isso, as campanhas têm sido cada vez mais curtas: Welcome to the Moon tem apenas 8 cenários, Machi Koro tem 10.
Mouse Maze tem 30, um número que pode assustar quem tem medo de se comprometer por tanto tempo. Mas é um jogo rápido, com partidas que podem durar menos de 20 minutos.
Um menor número de cenários seria benéfico para a percepção inicial dos jogadores, mas diminuiria a imensa riqueza de desafios diferentes que ele tem. Na dúvida, optamos pela abundância, mas em retrospecto, eu acho que uma campanha menor seria, senão melhor para o jogo, ao menos mais atraente para os jogadores.
5. Geração de cenários
Planilha que usamos para definir as regras e fazer comentários sobre cada cenário.
Mouse Maze é um jogo bem temático, por isso foi fácil começar a pensar em cenários. Bastava pensar em elementos que poderiam entrar num labirinto: Rodinhas de hamster? Túneis? Potes de biscoito? Alçapões? Raio laser? O desafio inicial foi criar desafios em torno de objetos como esses, mas que fossem diferentes o suficiente entre si.
Depois, já com mais desenvoltura, começamos a testar algumas coisas viajandonas, mas não necessariamente temáticas. Coisas que nunca vimos num rola-e-escreve, algumas que foram imediatamente pro lixo (e se ao longo do cenário fôssemos dobrando a folha do labirinto?) outras que ganharam um lugar no nosso coração (que não vou contar porque é spoiler).
E assim chegamos a cerca de 50 cenários desconexos, mas que precisavam de uma história para amarrá-los.
6. Criação da história
Cada cenário é parte de uma história contínua.
Criar o roteiro foi como montar um quebra-cabeças. Tínhamos na cabeça a história que queríamos contar: uma série de experimentos que usam labirintos para treinar ratos a encontrar sobreviventes em escombros (achou loucura? pois é baseado na realidade)
Criamos um arco narrativo que mostra como um experimento aparentemente bem intencionado vai dando muito errado, gerando consequências drásticas. Espalhamos vários plot twists pipocando e tentamos criar uma escalada de tensão até chegar num clímax no fim da campanha. Os cenários foram se encaixando e se adaptando a essa narrativa, e a narrativa, se adaptando aos cenários.
No final, dos 50 cenários, aproveitamos 20 e poucos, e criamos mais alguns para tapar os buracos que a história exigia, mas cujas peças estavam faltando.
7. Introdução
Skymines usa a campanha para introduzir aos poucos suas regras.
Muitos jogos de campanha usam os primeiros cenários como tutoriais, para ensinar a regra básica aos poucos. Alexander Pfister chega a criar campanhas não para criar uma história, mas com o único propósito de introduzir em etapas as mecânicas de seus jogos mais complexos.
Apesar de ter regras muito simples, Mouse Maze tem uma lógica incomum: você não leva o ratinho até a saída, apenas cria as paredes que vão limitar e guiar a sua mobilidade. Por isso optamos por criar 2 cenários tutoriais até chegar no 3o, que corresponde à regra básica.
Isso impede que os jogadores fiquem assoberbados pelo raciocínio incomum que Mouse Maze exige, com 2 cenários que os guiam gentilmente para a pancadaria que vão enfrentar do terceiro em diante.
Vendo o feedback de quem jogou a campanha, fico achando, ainda sem certeza, que bastava um únic cenário introdutório, para que os jogadores cheguem no filé mais rápido.
8. Playtestes
Cada playtester preencheu uma planilha com seus comentários e pontuação em todos os cenários nos testes cegos.
O maior problema dos jogos de campanha é testar tudo. Mouse Maze tem uma vantagem grande que nos permitiu enfrentar virgens essa primeira experiência: é um jogo rápido e com pouca interação, o que nos permite testar muitas vezes solo. Leandro famosamente tem mais de 1500 partidas no lombo, e eu não estou tão atrás.
Depois de testar extensivamente sozinhos, jogamos 2 campanhas inteiras com jogadores diferentes, em que, claro, descobrimos um monte de problemas.
Depois fizemos 7 campanhas com testes cegos, ou seja: sem nossa presença, deixando que os jogadores entendam as regras e joguem sem nossa orientação. Recrutamos voluntários, enviamos um print ‘n’ play e pedimos que preenchessem formulários de feedback ao fim de cada cenário.
Com eles, conseguimos entender melhor as dúvidas e ambiguidades, adaptando os textos e ajustando as regras onde era preciso.
9. Complexidade
Ao longo dos cenários, novos itens entram (e saem) do jogo.
Os 30 cenários de Mouse Maze não mudam apenas a posição dos objetos (na verdade, isso é sorteado no início de cada partida, cada cenário sozinho já tem alta dose de variabilidade).
Por isso, a cada novo cenário é preciso aprender uma regra e um objetivo diferente. Para evitar o excesso de informação, nos impusemos a limitação natural de ter que encaixar tudo numa carta de tamanho tarô. Se a regra fosse longa demais pra caber ali, então estava muito complexa.
Isso nos forçou a ser muito sucintos, descartar excessos e procurar soluções simples para fazer os desafios funcionarem.
Conclusão
Eu poderia terminar com um “não tentem isso em casa”, porque é uma desgraceira de trabalho. No tempo que fizemos o Mouse Maze, poderíamos ter feito 4 outros jogos. Mas a verdade é que foi uma experiência tão divertida e recompensadora que já estou criando campanhas para ooutros 2 jogos em desenvolvimento.
Fazer jogos de campanha te força a pensar no seu jogo como um pequeno ecossistema, que roda bem no modo básico, mas flexível o suficiente para servir de playground para você plugar e desplugar novas regras e assim vê-lo crescer, desabrochar e explorar novas fronteiras.