Quando resolvi traduzir a série Automa Approach, de autoria do Morten Pedersen e publicada no blog dele no BGG, pensei com meus botões o que ele diria se eu resolvesse lhe entrevistar. Ele foi muito receptivo à proposta e aceitou no ato! Acho interessante que todos interessados nos modos solo de jogos multiplayer não apenas leiam a série, mas também entendam um pouco o que passa pela cabeça de uma das pessoas que trouxe boas inovações neste nicho do nosso hobby. Morten Pedersen foi, como verão pelo texto, responsável pelos automas dos jogos mais recentes da Stonemaier, sendo que o do Viticulture é muitíssimo elogiado. Ainda que em uma das perguntas ele tenha tergiversado a respeito do assunto, o resultado final foi bem interessante.
E agora uma confissão pessoal: nunca joguei o Viticulture! Preciso remediar isso logo, mas ainda não sei como!
1) Quais os seus hábitos em relação aos jogos de tabuleiro? Você prefere jogos solo ao invés de jogos multiplayer?
Sendo um introvertido nato, eu diria que prefiro os jogos solo, mas também adoro os jogos multiplayer! Tenho jogado jogos multiplayer toda minha vida, enquanto eu comecei com os jogos solo somente há alguns anos. Jogos solo são muito mais fáceis de se colocar na mesa do que os multiplayer. Se eu tiver uma hora entre afazeres, posso jogar alguma coisa. Isto jamais ocorreria se eu tivesse que juntar a turma de jogatina de antemão. Além de serem uma forma de acabar com minha fissura de jogar, os jogos solo me dão tempo para recarregar minhas baterias de introversão.
2) Sua Automa Approach é um método bastante simplificado de criar variantes solo para jogos multiplayer, mesmo para alguns que não seriam inteiramente compatíveis com este modo. Quais as principais vantagens e desvantagens que você enxerga em seu método?
Eu creio que as principais vantagens são de que o método replica, em muitos casos, a sensação do jogo multiplayer (você ainda tem a sensação de estar competindo com alguém), você mantem a tensão do jogo em que você pode ser derrotado e as principais interações do cerne do jogo. Ao mesmo tempo, a Automa Approach almeja a limitar o trabalho dado de gerenciar o oponente artificial pelo jogador.
Há um ponto de redução no retorno destes modos solo a partir do qual você poderia incluir mais elementos do jogo multiplayer, porém isto implicaria em aumento da complexidade e carga de trabalho ao jogador além do ponto em que isso seria adequado. Da mesma forma, há um ponto no qual você pode minimizar a complexidade e o trabalho dado ao jogador, porém o custo para a jogabilidade seria alto demais. A Automa Approach visa um ponto de equilíbrio entre estes dois.
Por outro lado, há desvantagens no método. Primeiramente, ele requer trabalho do jogador para manejar o automa e muitas pessoas prefeririam estar jogando o jogo do que fazer a contabilidade de um oponente de papelão. O automa também adicionam complexidade ao jogo, comparando-se com jogar apenas pela máxima pontuação, de modo que há mais regras a serem aprendidas pelo jogador. Para alguns jogos, como
Scythe, isso adicionará muito às regras, enquanto no caso de Viticulture, trata-se de um sistema relativamente simples e o modo solo pode ser utilizado como uma forma de aprender o jogo de uma forma divertida antes de ensiná-lo a seu grupo.
Em
Between Two Cities poderíamos ter criado um modo de pontuação máxima para o jogo solo sem muita dificuldade. Isto teria sido mais simples de aprender do que o sistema do automa que fizemos, mas para mim isto teria se tornado um quebra cabeças de otimização corriqueiro.
Finalmente, é digno de nota que há jogos em que simplesmente não há nenhum sentido em se tentar criar um sistema de automa. Por exemplo, desafio qualquer pessoa lendo isso a aplicar a Automa Approach a
Werewolf ou Charades e conseguir algo razoável!
3) Os jogos multiplayer solitários parecem ser o melhor tipo a responder à sua abordagem. Na era dos jogos cooperativos, este me parece um ponto bastante crítico. Você tem idéias de como game designers devem pensar seus jogos de modo que variantes solo sejam parte integral do jogo e estratégias como a do automa não sejam necessárias?
Creio que na maioria dos casos será bastante difícil fazer isso para jogos competitivos, mas se você fizer um jogo competitivo multiplayer que funcione como um jogo solo sem modificações, provavelmente vocÊ terá criado um jogo sem nenhuma interação, o que afastaria muitos jogadores. Mesmo jogos que são considerados multiplayer solitários tem algum tipo de interação. Eu não consigo pensar em um único exemplo de um jogo multiplayer competitivo sem nenhuma interação.
Desta forma, fazer um jogo com pouca interação reduz a quantidade de modificações que você deve fazer a um jogo antes de ele poder ser jogado em modo solo.
A única forma viável que vejo de fazer um jogo multiplayer competitivo que funcione de forma não modificada como um jogo solo é inserir o automa dentro do jogo multiplayer. Isto poderia ser sob a forma de um “ambiente” para o jogo que simule as ações de outros jogadores, como mobilizar alguns recursos, atacar o jogador, bloquear territórios. Este “ambiente” asseguraria que o jogador tivesse um desafio interessante, mesmo no jogo solo.
Tanto quanto sei, Snowdonia é um bom exemplo disso, muito embora eu nunca tenha de fato tentado (embora eu saiba que deva!), apenas lido o manual.
Outrossim, temos os jogos cooperativos, que em muitos casos podem funcionar de forma solo sem nenhuma modificação ao jogo, sendo os jogos da série
Pandemic um bom exemplo disso.
4) Que outros tipos de inteligência artificial você considera interessantes? Por favor dê alguns exemplos de jogos que adotam estas mecânicas.
Bem, isso depende de sua definição de inteligência artificial! Meu jogo solo favorito é
Dawn of the Zeds (second edition) e você poderia dizer que você joga contra uma inteligência artificial naquele jogo, mas não uma que toma o lugar de outro jogador verdadeiro.
Hostage Negotiator é um exemplo semelhante de um bom jogo no qual se joga contra um oponente artificial que não faz o papel do jogador verdadeiro. Neste jogo você negocia com um sequestrador de personalidade rudimentar, estado mental flutuante e que realiza ações.
A versão print-and-play do jogo Maquis, um jogo de alocação de trabalhadores, tem uma inteligência artificial que bloqueia trabalhadores da mesma forma que o automa de
Viticulture (que foi inspirado pelo Maquis), mas que não replica especificamente outro jogador como o automa de Viticulutre é capaz de fazer. Em Maquis, a inteligência artificial apresenta-se como um obstáculo para passar pelas duas missões que representam os critérios de vitória e derrota do jogo.
At the Gates of Loyang é outro jogo que eu adoro. É um jogo de 1-4 jogadores no qual há uma mecânica realmente limpa que simula outro jogador por remover cartas do pool de cartas deisponíveis e cria uma espécie de mão de cartas a partir da qual você pode roubá-las. Fora isso não há oponente a ser vencido. O modo solo replica alguns pontos de principal interação de quando se tem um oponente, mas você não compete com ele, mas sim contra sua própria pontuação.
No outro espectro há jogos que não apenas tentam replicar os pontos de interação de um oponente real, mas quase integralmente replicam um com um conjunto de regras avançadas para oponentes virtuais. Exemplos disso incluem os jogos da série COIN. Eu nunca testei um desses jogos, uma vez que o investimento de tempo necessário a aprendê-los é simplesmente alto demais para mim no momento.
Este tipo de inteligência artifical me parece interessante, mas seguindo esta rota, você torna o jogo inacessível a muitos jogadores e, pessoalmente, prefiro gastar meu tempo de jogo cuidando de minha própria vida do que tendo que manejar um oponente virtual. Por favor leia isto lembrando-se de que esta crítica parte de alguém (eu) que não jogou este tipo de jogo, logo, deve ser encarado com bastante cautela.
5) Quais você acredita que serão as próximas inovações no design de jogos para os jogadores solo?
Eu tenho pensado em criar inteligências artificiais adaptativas ou no estilo Legacy, que evoluem ao longo do tempo conforme o que ocorre no jogo e com o tipo de jogo que você faz. Desta forma, por exemplo, se você ataca muito, cartas de defesa ou contra-ataque poderiam ser adicionadas ao deck da inteligência artificial e, se você vencer o jogo por atacar a cidade da inteligência artificial, então algumas cartas deveriam ser acrescentadas ao deck do automa para os próximos jogos para tornar mais difícil que sua cidade seja atacada.
Além disso, vou me referir a posts de meu blog que lidam com possíveis inovações em inteligência artificial:
6) De que forma você enxerga a adoção de aplicativos eletrônicos, tablets e aparelhos de celular aos jogos analógicos? Você imagina que isto possa tornar-se uma ameaça à Automa Approach?
Eu definitivamente posso imaginar que isto pode ser uma ameaça à Automa Approach e aos jogos solo em geral. Eu creio que os jogos solo são mais ameaçados pelos jogos digitais do que pelos multiplayer, uma vez que jogos digitais podem replicar a maior parte da experiência solo de jogo, salvo pelo componente táctil, enuanto para os jogos multiplayer, as versões digitais carecem do aspecto social, que é muito importante para vários jogadores.
Posso imaginar alguém que joga a versão digital de um jogo multiplayer e compra a versão física para jogar com um amigo, mas para os jogos solo isto ocorrerá de forma menos corriqueira. Eu, por exemplo, joguei a versão eletrônica de
Levée en Masse tantas vezes que me parece difícil de que eu leve a versão física para a mesa em algum momento. Da mesma forma, há uma boa chance de que eu jamais comprarei
Sentinels of the Multiverse, pois tenho a versão eletrônica.
Para mim, no entanto, o sentimento táctil de um jogo faz uma grande diferença e, mais importante, um jogo de tabuleiro me livra dos emails, do BGG, do Facebook e todas estas distrações. Quando jogo um jogo no meu iPad, eu tendo a me alternar entre o jogo e meus emails e etc. Quando jogo uma versão física, eu coloco os eletrônicos de lado, o que significa que posso me concentrar muito melhor e me envolver mais no jogo.
Desta forma, eu não creio que jogos digitais substituirão os jogos solo físicos e, interessantemente, observamos um aumento nas vendas de jogos de tabuleiro e do número de jogos com modos solo na última década, na qual vimos o surgimento de tablets, smartphones, apps e board games digitais. Então, felizmente, não há nada que indique que os board games digitais substituirão os físicos, sendo eles solo ou multiplayer.
7) Em seu texto, você foi muito crítico de jogos nos quais você está constantemente tentando vencer sua maior pontuação, como Agricola. Como você imagina que isto pudesse mudar para estes jogos?
Eu posso ter soado mais negativo do que de fato sou. Eu, por exemplo, gosto de
Agricola solo, mas acho que ele poderia ser muito melhor com um oponente e eu tenho o sonho secreto de ser autorizado a fazer um automa oficial para Agricola. Este é um excelente exemplo de jogo cujo modo solo poderia ser melhorado por ter um oponente artificial e acredito que isto poderia ser feito de modo muito semelhante ao Viticulture.
Na verdade, você poderia dizer que a Automa Approach é minha resposta à sua questão. É a forma que proponho para tornar as versões solo de jogos multiplayer algo além de modos nos quais você tenta vencer sua maior pontuação. Dito isto, é difícil dar uma resposta geral, uma vez que a forma como você conduzirá tudo dependerá das mecânicas do jogo.
Quando jogo Agricola no modo solo, posso predizer a maior parte do que poderá ocorrer e não há risco enquanto espero os recursos se amontoarem, uma vez que não há mais ninguém para pegá-los antes de mim. Desta forma há pouca tensão e cada jogo parece-me um quebra-cabeças de otimização bastante estático.
É importante ressaltar que eu realmente gosto do modo solo para Agricola e o ranqueei como número 16 em meu top 20 de jogos solo há alguns meses. Pessoalmente, o modo solo poderia rivalizar a grandeza do modo multiplayer se tivesse um oponente artificial ao invés de ser apenas bom.
8) O que devemos esperar da variante solo de Scythe?
Espero que uma boa experiência! O automa de Scythe provê uma experiência player vs. player na qual você joga contra um automa que tenta mimetizar as interações de um oponente humano. Eu coloquei algumas regras no BGG que permitem o jogo com até 5 jogadores com qualquer combinação de jogadores verdadeiros e automas, mas isto ainda não foi adequadamente testado, de modo que isto não será incluído no manual.
O automa de Scythe é um pouco mais complicado do que o de Viticulture e definitivamente há uma curva de aprendizado. O sistema de alocação de trabalhadores simples de Viticulture permite que o automa bloqueie as ações no tabuleiro. Em Scythe, por outro lado, tem um tabuleiro bem mais complexo com mais opções de movimento. O tabuleiro e a liberdade de movimento representam alguns dos principais pontos de interação do jogo e posicionar suas uniddades em relação às dos seus oponentes é muito importante.
Precisamos lidar com este fato e, basicamente, discutimos duas abordagens: 1) desenvolver regras de movimentos de unidade que tivessem alguma inteligência; 2) adotar a abordagem de aproximação de horda, tornando a oposição extremamamente estúbida, mas dando-lhe hordas de unidades.
Na segunda abordagem, o jogo seria bastante diferente do jogo multiplayer, de modo que optamos pela primeira. Como curiosidade, posso dizer que o sistema que criamos foi parcialmente inspirado pelo
Jogo da Vida, de John Conway.
Na verdade também discutimos adotar a segunda abordagem e criar uma expansão cooperativa para Scythe, na qual os jogadores lutariam juntos contra hordas mecânicas enviadas pela Fábrica, no centro do tabuleiro e do universo de jogo. Talvez nunca tenhamos tempo para fazer isso acontecer, mas é algo que eu gostaria de fazer.
9) Quais seus jogos favoritos hoje em dia?
Meu jogo favorito é Dawn of the Zeds. É o jogo mais cinemático, angustiante e de caos parcialmente controlado que já joguei. Outros favoritos incluem
Onirim, com sua combinação de simplicidade, variabilidade e conforto, Mound Builders, por ser o jogo mecanicamente mais forte na série States of Siege (uma série de jogos tower defense) e, finalmente,
The Lord of the Rings: The Card Game, pois tem toneladas de variabilidade, numerosas expansões e me dá um bom senso de aventura. Na linha dos multiplayer, gosto de
Puerto Rico,
Tigris & Euphrates,
Warhammer: Invasion e
Blood Bowl (Third Edition).
10) O que podemos esperar de Morten no futuro próximo?
Não muito, eu creio, ao menos que esteja acompanhando meu blog, onde eu solto alguma coisa uma vez por semana hoje em dia. Between Two Cities e Viticulture Essential Edition foram lançados no final do últimmo ano com modos solo nos quais trabalhei. O próximo lançamento no qual me envolvi será Scythe, para o qual desenvolvi o modo solo. Ele deverá chegar nas mãos dos apoiadores em agosto deste ano. Também sou parte de um time envolvido em uma expansão para Euphoria, mas isto está indo bem mais devagar do que o planejado, de tal forma que agora não sei dizer quando estará disponível.
Há também um pequeno projeto sendo testado por uma editora no momento, mas eu prometi que não revelaria nenhum segredo neste momento e nem sei dizer s ele acabará sendo publicado.
Finalmente, eu e meus dois parceiros (David Studley and Lines Hutter) temos dois jogos em estágios variados de desenvolvimento, mas nenhum destes está pronto para ser mostrado a um editor por enquanto. Eles são projetos para aprendermos o ofício do game designe. Se um deles acabar por ser publicável, será ótimo, mas esta não é minha intenção inicial com eles. Nosso foco é em projetos que fazemos para a Stonemaier Games.
Dito isto, estou muito feliz com um deles em particular e gostaria de encaminhá-lo a playtests externos em breve, uma vez que creio ser este o melhor jogo testado por mim até aqui. É um card game solo/cooperativo que começou como um casamento de Onirim e um print-and-play gratuito que fiz em 2012, chamado Endless Nightmare.
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