Aproveitando o lançamento do "Ankh: Deuses do Egito" em terras tupiniquins e meu inocultável apreço pelo tema do jogo, busquei energias divinas para escrever sobre este jogo de proporções míticas.

Uma foto com minis bonitas pra garantir a atenção do leitor ameritrash 
Trocadilhos a parte, Ankh foi devoção a primeira vista pra mim somente pelo tema. Sou um fã inveterado da obra American Gods do Neil Gaiman e todo esse conceito de "economia da fé" me parece fascinante: a ideia de que as divindades sobrevivem da fé de seus seguidores e, logicamente, quanto mais quanto mais seguidores, melhor. Sem seguidores, uma divindade é esquecida e padece nos registros históricos da humanidade, desprovida de sua uma vez imponente grandeza.
Em Ankh, a aplicação do tema ocorre de forma bem interessante. Monumentos - que são construções com controle disputado já colocadas no mapa no setup e posteriormente multiplicadas com outras ações - tem duas funções básicas: gerar seguidores e gerar devoção. Parece óbvio, não é? Seus fiéis se reúnem em seus monumentos, que são fontes da sua glória não tão eterna.

Anúbis com um obelisco do lado - quem disse que tamanho não é documento?
"Mas como ganhar o controle desses monumentos e expandir seu poder?" O jogo opera com um sistema de seleção de ações (que por sinal são somente quatro) em que cada vez que um jogadores escolhe e realiza uma ação, o marcador daquela ação avança um espaço. Quando esse marcador chega ao último espaço de sua linha de ação, o turno daquele jogador termina e um evento é desencadeado.

Trilha de ações bonitona, com miniaturas pintadas - baba, baby
E agora o eurogamer ficou piradinho: "Eventos!?". Sim, o jogo tem eventos, mas totalmente determinísticos e ordenados desde o início do jogo, ou seja, você sabe o que vai acontecer e em que ordem vai acontecer; nada de cartinhas aleatórias ou dados rolando - ufa! "E como funcionam esses tais eventos?"
Trilha de ações em cima e trilha de eventos em baixo
O primeiro tipo de evento da trilha, e que se repete várias vezes no jogo, é esse da construção com um cetro em cima: o evento de controle de monumento. Nele, o jogador que desencadeou o evento irá tomar o controle de um monumento neutro no tabuleiro e, depois que todos os monumentos tiverem um dono, será possível tomar um monumento de outro jogador - quem disse que na fé não tem disputa?
O segundo tipo de evento (que aparece primeiro na quarta posição na trilha) é o conflito, a mais importante fonte de devoção - que se traduz no jogo em pontos de vitória. O conflito envolverá avaliar cada região numerada em ordem e determinar se ocorrerá ou não uma batalha (que ocorre quando existe mais de um jogador na mesma região). A batalha é de certa forma determinística: cada jogador possui uma mão de cartas de batalha igual para todos e, na batalha, ocorre a seleção e posterior revelação simultânea de cartas. Também há um mecanismo bem comum na batalha que é presente em jogos como Concórdia ou Transatlantic, em que as cartas utilizadas somente retornam para sua mão após jogar uma carta específica em combate (que possui somente este efeito, sendo naturalmente irrelevante no combate).
O terceiro tipo de evento é a criação de uma caravana de camelos. Esse evento basicamente dará ao jogador que o desencadeou a oportunidade de estrategicamente dividir uma região em combate, trazendo opções como dividir o poder um jogador em uma região estratégica ou mesmo tomar para si uma região em que passaria a dispor de supremacia após a divisão.
E existem somente estes três eventos. "Mas se até agora tudo que comentamos é igual para todos os jogadores, como os deuses se diferenciam em sua individualidade?" Cada deus possui uma habilidade assimétrica particular de sua história (no verso do tabuleiro de jogador também há uma referência de tema bem interessante de cada deus, especialmente para quem gosta de uma pitada de pesquisa teológica).

Tabuleiro de jogador do deus Rá: absolutamente radiante, não deixe ele sozinho numa região ou sua devoção vai escalar rapidamente
Além da habilidade assimétrica, cada deus possui também, em seu tabuleiro de jogador, doze habilidades que pode desbloquear durante a partida fazendo uma das quatro ações possíveis. Todas essas habilidades são iguais para os deuses, o que evita a necessidade de toda hora perguntar ao coleguinha o que o deus dele faz, basta olhar pro seu tabuleiro e ver quais espaços preenchidos ele possui - agradeço aos céus!
"Mas e monstros como em Rising Sun e Blood Rage, não temos?" Temos! O jogo vai dispor de três tipos de guardiões que serão desbloqueados e cedidos a um jogador quando um patamar específico de poderes for desbloqueado no seu tabuleiro de jogador, mas cuidado: existe um número limitado de guardiões que é menor que o número de jogadores, então esperar para desbloquear poderes pode te fazer perder a oportunidade de ter um ou outro. Cada guardião tem uma habilidade especial no jogo.
Quem não quer ser amigo de um hipopótamo com um porrete? Guardião do coração
"Ora, e por que não falar das ações do jogo?" Porque são mais simples do que parecem: você move miniaturas, ganha seguidores de acordo com o número de monumentos neutros ou que você controla que tenham miniaturas suas adjacentes - afinal é preciso fazer uma aparição ou outra pras pessoas se engajarem na causa -, invoca miniaturas novas no tabuleiro ou desbloqueia um dos doze poderes disponíveis no jogo.
Mas agora que abordamos bastante sobre como o jogo funciona, vamos endereçar o elefante no deserto: o merge. "Mas que diabos é o merge e por que existe uma polêmica tão grande sobre esse aspecto do jogo?"
Sobek após merge, nessa base bacana. Tomou a vacina do COVID e subiu no pedestal: arrasou!
Vamos voltar lá na trilha de eventos e dar uma olhada no terceiro conflito e você vai ver em vermelho do lado: "Faça o merge de dois deuses (somente em três ou mais jogadores)". O merge ocorre ao fim deste conflito e é bem simples: o deus com mais baixa devoção será retirado do jogo, ou seja, sua figura de deus, suas miniaturas e seus monumentos controlados são removidos do jogo e ele passa a jogar junto com o deus de segunda menor devoção - que também precisará diminuir sua devoção até a pontuação do jogador que removeu suas peças. Ambos os jogadores agora têm acesso às habilidades assimétricas de ambos os deuses (as habilidades desbloqueadas serão as do jogador que não teve suas peças removidas no merge).
"Terrível! Sacrilégio! Prefiro perder a me sujeitar a isso!". São frases desesperadas que rugem em grupos de jogos de tabuleiro. Mas é sobre isso, e tá tudo bem: na história do panteão egípcio é muito comum que esse tipo de fusão aconteça, vide Amun Rá, uma fusão em o deus Amun e o deus Rá. "Mas não tô nem aí, eu quero é ganhar sozinho". Aí é uma questão sua que deve ser resolvida em terapia, não em uma mesa de jogo.
"Mas o que é o inception estratégico do merge?" A estratégia dentro da estratégia, o jogo dentro do jogo, é o inception de decidir se você vai adotar uma estratégia de ficar próximo na pontuação com os demais jogadores para fazer um merge sem descer demais na pontuação ou se você vai tentar ser o líder e ganhar o jogo sem recorrer ao merge. Você vai querer ser o deus maior no merge (o que fica na mesa) ou vai abrir mão de manter suas peças para assumir os poderes e os monumentos que seu parceiro de merge jogador conquistou? A única coisa que você precisa evitar é participar de um merge em que há um jogador com uma pontuação muito abaixo do líder de pontuação, porque será uma subida lenta e dolorosa.
"E qual é a compensação que os deuses no merge possuem em relação aos demais jogadores, já que sua pontuação vai para último lugar?" É bem forte e sutil: a estrutura de rodada do jogo é resumida em cada jogador fazer duas ações diferentes, sendo que a segunda ação precisa ser uma das disponíveis abaixo da primeira ação. Se um evento for desencadeado na sua primeira ação, você simplesmente resolve o evento e não faz sua segunda ação. Os jogadores no merge fazem diferente: cada um faz uma ação somente na sua vez. Pode parecer até pior, mas é bem sútil perceber o nível de controle sobre os eventos que isso proporciona, bem como a possibilidade de encadear a mesma ação sequencialmente se eles estiverem sentados lado a lado - desbloqueando uma das restrições mais impactantes do jogo e ganhando os louros de ser o jogador que toma as decisões ao desencadear um evento.
Em diversas partidas, já vi o merge acontecendo e os jogadores pós merge recuperarem o jogo e ganharem. O ideal aqui não é encarar o merge como player elimination, mas como uma estratégia e como uma forma de dar uma segunda chance para o jogador que está com a pior pontuação. Essa vitória pode deixar o jogador que era líder no momento do merge com uma sensação amarga de "joguei melhor e acabei perdendo", mas é um jogo, então vamos nos divertir.
"Player elimination?" Sim, falei para não considerar como tal, mas também temos player elimination em Ankh. Repare na quarta batalha com o texto ao lado: "Elimine os deuses em vermelho". Acontece que a trilha de devoção (pontos de vitória) apresenta espaços azuis e vermelhos. Vermelho não pode ser bom, né? Pois é, se você estiver em um desses espaços ao fim do quarto conflito: bye bye, so long, farewell! Você é considerado um pária e cai no esquecimento dos adoradores egípcios. E se todos os deuses forem esquecidos, flavour punch: o Egito é atingido por uma onda de ateísmo e o panteão divino vira passado.

Trilha de devoção: pra você ver que não é fácil ser um deus
E também existe a condição de final de jogo da corridinha, que é dar a vitória ao primeiro que alcançar aquela flor azul bacana no topo da trilha de devoção. Quando isso acontece, o Egito está tão devoto àquela incrível divindade, que não há milagre que mude o destino: foi ao Nilo, perdeu a caravana!
Se nenhuma condição de fim de jogo foi atingida - somente um deus sobrar na partida, um deus chegar no topo da trilha de devoção ou todos os deuses serem esquecidos - o deus com mais devoção ao fim do quinto conflito é declarado o vencedor.
E você, vai emergir como a divindade definitiva ou será esquecido em "Ankh: Deuses do Egito"?
As imagens utilizadas nesta análise podem conter extras e exclusivos do Kickstarter não disponíveis na versão nacional do jogo, além de miniaturas pintadas - o que não está disponível em nenhuma versão comercializada.
Este texto não tem como prerrogativa ferir ou contestar qualquer crença religiosa, apenas representa o contexto histórico e religioso, bem como a temática envolvida no jogo em análise. Caso se sinta incomodado ou prejudicado de alguma forma, recomendo não jogar.
Não respondo MP (estou bloqueado por motivos de forças ocultas), então caso tenha dúvidas ou comentários, por favor, registre-os nessa postagem.
Esta análise apresenta superficialmente regras do jogo e não deve ser utilizado como referência para aprender como jogar.