SEM SPOILERS
Desde que ouvi falar que seria lançado um jogo baseado nos antigos "point and click", me interessei em conhecer Cantaloop. Porém senti falta de algum conteúdo que fornecesse um review honesto e completo do jogo, seus pontos fortes e fracos baseados em uma jogatina completa, da aventura do início ao fim. Por isso aqui estou eu fazendo esse papel.
E vou começar logo tirando o elefante branco da sala: apesar de ser um jogo da Galápagos e, pior ainda, que contem bastante texto, não, o jogo não possui erros de tradução significativos. De fato apenas um erro foi encontrado até agora, que não faz a mínima diferença no gameplay (um "Eu seu" ao invés de "Eu sei") e na verdade vc pode nem mesmo passar por esse ponto até o final do jogo (eu não passei, vi depois).
E fora isso, a produção em si é de um material de muito boa qualidade. Então pelo menos nesses quesitos, ponto pra Galápagos (se vc considerar q, na verdade, uma tradução correta deveria ser o mínimo a se esperar...).
Porém... Como não dá pra elogiar tudo, tb queria levantar logo de cara algo negativo da versão Galápagos, que provavelmente foi responsabilidade da sua área de marketing: o nome do jogo. Em inglês, oficialmente, o nome é "Cantaloop: Book 1 – Breaking into Prison", que pode ser traduzido para "Cantaloop: Livro 1 - Invadindo o Presídio". Vc pode perceber que o nome q a Galápagos manteve é quase exatamente o mesmo, a não ser pelo termo "Livro 1", que foi retirado.
Acontece q esse "Livro 1" existe pois (adivinhem...) esse é o primeiro de uma série de livros, mais exatamente uma trilogia. Segundo uma citação ao designer, o livro 2 já está quase 99% concluído e o livro 3, 45%. Ou seja, esse não é um livro único, onde vc vai ter uma aventura "completa". Sim, ele tem um objetivo, como o próprio título dá a entender, um arco que é fechado (talvez até mais de um), mas ele de fato é apenas o começo da história. A sensação q eu tive foi mais ou menos qdo vi Star Wars Episódio 5 (O Império Contra-Ataca) pela primeira vez e percebi que se não visse logo o Episódio 6, teria visto um filme bom, mas uma história sem um final.
O livro, no final das contas, tem um gosto de prólogo. O que é exótico se vc parar para pensar que esse livro em si já tem um pequeno prólogo. E mais ainda, o jogo todo tb tem um prólogo print and play disponibilizado. É a verdadeira inception dos prólogos rs
Mas, provavelmente por marketing, como falei, a Galápagos malandramente tirou o famigerado e informativo "Livro 1" do título assim, na encolha. E, na verdade, mais do q isso, ela ainda traduziu na capa a frase "An interactive adventure" (que seria algo como "Uma aventura interativa") para a frase: "Um livro de aventura interativa", que é um detalhe sutil mas, a meu ver, dá mais ainda a atender que a aventura inteira está nesse livro. Ou seja, os incautos e desavisados que comprarem o livro achando que vão viver uma aventura completa, podem se decepcionar.
Mas se vc já for com isso em mente, pode ter certeza que será uma ótima experiência. Eu gostei bastante, é algo diferente e tem um estilo que me agrada muito. Após ter completado todo o jogo, abaixo dou alguns pontos positivos e negativos, para quem ainda estiver em dúvida.
Positivos:
- Se vc gostava/gosta dos videogames estilo point and click, vai fundo, esse jogo é pra vc! Acho difícil encontrar uma experiência em board que simule melhor o funcionamento dos point and click do que esse daqui.
- A imersão é talvez o principal componente do jogo. O tempo todo vc está ali querendo saber o quê acontece depois, como seguir na aventura. Vc quer jogar mais e mais até o final e isso é o que faz o jogo, os puzzles são divertidos e fazem sentido.
- Muita gente pode achar que Cantaloop vai lembrar os livros-jogo (Viva essa aventura e outros) que a Mandala/Grock tem lançado. Até lembra um pouco em alguns momentos, mas pra mim o jogo que mais se aproximou mecanicamente foi Chronicles of Crime, mas com uma vantagem muito grande: a eliminação total do celular. Não que eu seja um radical dos boardgames sem celular, pelo contrário, adoro Alquimistas, já joguei diversos Unlock e me diverti imensamente com a história e os puzzles de Escape Tales: O Despertar. Acontece q todos esses têm algo em comum: o jogo se passa no tabuleiro e a tecnologia é apenas uma muleta de ajuda para facilitar o funcionamento do jogo. Em Chronicles of Crime não, o jogo se passa praticamente todo no app e a parte física (cartas e tabuleiros) se torna uma mera ajuda para a mecânica. E é um tal de scannear código de barra o tempo todo que cansa! De fato, se o jogo fosse unicamente um app no celular, sem a parte física, seria muito mais prático de se jogar...
Cantaloop até poderia ter um app que facilitasse algumas coisas, mas não, ele é totalmente físico, deixando a imersão e a sensação de um verdadeiro boardgame muito mais evidente. Engraçado como o Chronicles, que tem tabuleiros, não tem cara de boardgame e o Cantaloop, que é "apenas" um livro, tem muito mais esse feeling. Sutil ironia.
- Outro ponto extremamente positivo é o fato de não morrermos na história. Isso é comum nos livros-jogo, oq é até interessante pois deixa o jogador sempre na tensão de não dar um passo em falso para não correr o risco de perder, mas é um saco ter que começar tudo de novo, passar pelos mesmos lugares, só para chegar naquele ponto onde existiam 2 portas, uma era o caminho certo para continuar o jogo e a outra tinha um leão que comeria vc, e por pura sorte (ou, no caso, azar) vc escolheu o leão. É muito comum inclusive, nesses casos, o jogador já de saco cheio não voltar ao início, simplesmente fingir que nada aconteceu, voltar àquele último ponto de bifurcação, escolher a outra porta e seguir adiante. Cantaloop simplesmente tira, de forma acertada a meu ver, esse inconveniente da experiência lúdica.
- Não existe aqui uma tentativa de avaliar sua progressão através do tempo que vc demorou jogando-o. Essa particularidade é mais comum em jogos de estilo escape room, mas tem também implementada em alguns livros-jogo e até mesmo no próprio Chronicles citado anteriormente. Acho q esse artifício tem mais apelo em jogos de no máximo 1 hora, como os Unlock ou Deckscape, em que a partida é jogada em uma "talagada" só, na pressão, correndo contra o tempo. Mas em jogos como esse, demorados, com diversos puzzles, muitas vezes com "sidequests" que estendem o tempo, não me faz muito sentido. Isso fora que o Cantaloop me remeteu a um jogo tranquilo, até mesmo relaxante, para jogar no meu tempo, pensando em como as coisas se conectam. Ter um tempo para acabar, ganhar pontos, ... iria contra a experiência. Eu pelo menos ignoraria essa regra, se tivesse (como inclusive já ignorei em alguns escape-rooms).
- O protagonista, como é dito na contracapa do jogo, é de fato um personagem muito carismático, e ao longo da partida vc vai começar a encontrar piadinhas que ele vai soltando, fora a metalinguagem dele, quebrando por vezes a "4a parede", que é bem legal e tb faz o jogo ser tão legal e diferente. E não só ele, mas outros personagens, itens e cenários possuem piadas e easter eggs escondidos. Tudo isso ajuda demais na imersão. E aqui mais um ponto para a Galápagos tb, pois o jogo de fato não foi só traduzido como tb localizado, e muito bem, diga-se de passagem! Vc irá perceber frases de efeito e ditados populares fazendo referência à componentes do jogo que só existem no nosso idioma, e normalmente fazem sentido com a história.
- Por último, devo elogiar uma decisão no jogo que a meu ver fez grande diferença: o uso do "plástico vermelho" (cujo jogo deu o chique nome de "Decodificador"). Pra começo de conversa aqui o treco realmente funciona. Eu tenho o Decrypto, que aliás é um excelente partygame, mas nele o uso do plástico, além de desnecessário mecanicamente, é inútil tb na prática, pois é perfeitamente possível ler a palavra mesmo não usando o tal decodificador, sendo de fato apenas um "gimmick" no jogo. No Cantaloop não, mesmo com esforço há uma certa dificuldade em se conseguir ler o texto sem o tal plástico, e mecanicamente é muito útil, pois se os textos estivessem todos ali à mostra, principalmente aqueles que estão no livro (que ficam ao lado do local relacionado), mesmo sem querer, dificilmente vc não tomaria algum spoiler de uma parte que não deveria ser lida no momento.
Negativos:
- O tutorial. Apesar de bem explicadinho, talvez seja explicadinho demais... O jogo é tão simples de se entender que um tutorial de 4 páginas pode assustar um pouco.
- Códigos numéricos (senhas) ao longo do jogo. No próprio tutorial o funcionamento desses códigos é explicado, são basicamente itens que necessitam de um código a ser descoberto, como um cofre, por exemplo. Porém, para mim pelo menos, ficou subentendido que eu iria me deparar com algum item, em um dado momento da história, que simplesmente iria me dizer que a senha do cofre é XWYZ, por exemplo. Mas não é o caso, na maior parte das vezes o que vc precisa fazer é algo tipo tentativa e erro, baseado em informações vagas q vc recebeu até aquele ponto. E mais do q isso, não é evidente quando as informações já são suficientes para vc tentar abrir o tal cofre ou se vc deve tentar procurar mais (isso sem considerar uma certa informação, relacionada a um desse códigos, que pra mim ficou beeeeeeeem mal repasada...).
- As soluções "fora da casinha". Existem alguns momentos do jogo em que, para solucionar o problema, é necessário ter um pensamento "fora da caixa", ou seja, fora do padrão que o jogo mantém ao longo de praticamente toda a aventura. Eu gosto disso, aliás foram detalhes desse tipo que me fizeram gostar tanto da série Exit, porém aqui em Cantaloop a coisa pode ficar "enigmática" demais. Eu particularmente fiquei preso em uma situação em que eu entendi o quê precisava ser usado e ainda assim precisei das dicas no final do livro para saber exatamente o quê fazer. Mas acho q esse ponto específico pode ser algo que afetou apenas a mim pessoalmente, eu por exemplo, vi no BGG tópicos sobre outros pontos que foram comentados como difíceis para algumas pessoas e pra mim foi "de boa". Talvez seja uma visão puramente pessoal.
- Locais e cartas pouco utilizados. Acredito eu que um dos limitantes do jogo é justamente a quantidade de locais que o jogo tem. Quanto mais locais, mais páginas para serem impressas e organizadas e, consequentemente, maior o preço do jogo. Nesse sentido, me dá uma certa "dor no coração", depois de finalizar o jogo, olhar para alguns locais e perceber que ele quase nem precisava existir, pois pouca coisa aconteceu ali. Um trabalho de fazer a ilustração, projetar os códigos, encaixar na história, etc, etc, etc, para (aparentemente) pouco resultado prático. Da mesma forma algumas cartas, que entram e somem do jogo e as vezes vc nem percebe. Fica aquele sentimento de "desperdício de componente". Só eu que acho isso?
- (Possível?) História genérica. Por último, vou comentar algo que vai ficar apenas na especulação pois, como eu falei, a aventura está longe de terminar. Dessa forma, o livro faz um certo mistério sobre algumas motivações do personagem. O quê ficou mostrado até agora é que essas motivações em algum momento serão contadas, mas tenho receio que seja uma história genérica, nada demais. Espero bastante que eu esteja sendo enganado direitinho, mas do que eu vi até então é isso que sou levado a crer. será uma artimanha do jogo para surpreender? Fica tudo no campo do "achismo".
tl; dr;
Vc gosta de point and click? Esse é o board perfeito pra vc!
Vc gosta de livro-jogo? Há muitas semelhanças. Não espere vários caminhos alternativos, o jogo é bem mais linear nesse sentido, mas tão divertido quanto.
Vc gosta de escape rooms? Há puzzles sim, mas nada matemático ou visual. É muito mais aqueles enigmas mesmo de point and click, de saber combinar os itens certos no momento certo, mas eu sinto a mesma satisfação quando consigo desvendá-los.
Mas se vc não gosta de nenhum desses pontos acima, e além disso não é chegado em jogos "story driven", esse jogo não é pra vc. Mas mesmo assim dê uma chance se tiver oportunidade, vai q vc passe a se interessar por um tipo de jogo que nem sabia q gostava :-)
Espero ter ajudado a quem estava em dúvida.
[]'s