Engana-se quem pensa que os jogos de tabuleiros são restritos às nossas mesas e meeples. Muitas vezes, nosso amado hobby transpõe os ambientes de nossas salas de estar para figurar em nossas telas, sutilmente invadindo séries, filmes e outras produções audiovisuais de nossa preferência.
Na série O Gambito da Rainha, com seu estrondoso sucesso, nós vimos o xadrez tomar o lugar de co-protagonista junto à personagem Beth Harmon. Eu até cheguei a expressar um pouco minha opinião sobre a produção no Instagram. Porém, existem incontáveis de outras referências audiovisuais aos board games, que em geral são usados como meios para um de se falar de questões muitos particulares sobre relacionamentos, conflitos e histórias. Foi daí que surgiu a ideia desta nova coluna: a JogaMana Off Topic – que, na real, nem é tanto Off Topic assim.
Nem todo mundo apreciou meu ponto de vista sobre a série…
Para começo de conversa, pensei em falar de uma série que trouxe tanto os board games para a tela ao longo de suas 6 temporadas que até rolou polêmica com um episódio envolvendo D&D. Estou falando de Community. Para quem não conhece, vou resumir o enredo dizendo que se trata de 7 pessoas que entram numa faculdade de qualidade duvidosa para tentar conquistar um diploma sem ter que se esforçar tanto assim. O tchans do programa se baseia em um humor inteligente e até semiótico, cheio de símbolos, referências e constante quebra da “quarta parede”. Mas esses assuntos vou deixar para os TCCs e teses da vida.
Os personagens principais de Community
O ponto que eu realmente quero abordar é como a série encontra significados para os board games além da diversão em si – coisa que toda tabuleirista de respeito faz constantemente. Para Community, os jogos de mesa são também excelentes ferramentas para:
Em um dos episódios mais icônicos da série, os sete amigos estão jogando Yahtzee. Eventualmente, chega a pizza da noite e deve-se decidir quem será o responsável para recebê-la. Jeff sugere decidir isso nos dados, e Abed avisa: “você sabe que desta forma está criando 6 timelines, né?” Jeff responde apenas um “aham” com desdém e rola o dado, sem saber do caos que está criando no universo. O episódio dá origem à dark timeline de Community, em que os personagens têm histórias e destinos sombrios. Lição do dia: cuidado ao decidir as coisas com base na sorte dos dados. Vou deixar para o Abed desenvolver melhor esse aprendizado com a cena abaixo:
Ajudar na saúde mental da amiguinha (E14S02 – Advanced Dungeons & Dragons)
Este foi o episódio banido da série devido a uma referência de mau gosto a black face. É uma pena, pois foi algo totalmente desnecessário em um bom episódio de outra forma. Nele, o grupo tenta trazer um pouco de alegria ao colega Neil, cuja depressão e baixa autoestima o fazem ter pensamentos suicidas. Como Neil é um aficionado por RPG, eles propõem um sábado de aventura no jogo para animá-lo. Depois de vários percalços na jornada, o colega admite ter sido um dos melhores jogos da vida dele, e planeja jogatinas para os próximos finais de semana. Sabemos que a depressão do mundo real não se cura magicamente com uma tarde de jogatina, mas todas nós temos consciência do bem que isso pode fazer para a saúde mental. Destaco aqui a cena quase erótica da Annie (que, no jogo, interpreta Hector, o Bem-Dotado) com uma elfa guardiã de pegasus (interpretada pelo Mestre do jogo, Abed):
Resolver contendas de forma diplomática (E09S05 – VCR Maintenance and Educational Publishing)
Para que brigar? Bora resolver as paradas no tabuleiro! Annie e Abed estão em conflito para decidir entre um novo roommate. Diante dessa situação, eles fazem o que qualquer uma de nós faria: rolam os dados em um jogo caótico de faroeste chamado Pile of Bullets que não parece ter propósito nem fim. Para quem ficou curiosa, nesta página aqui tem, inclusive, as regras – que são explicadas por meio de uma fita VHS, algo que eu aprendi ter sido meio modinha nos anos 90. No final, para não dar spoilers, vou apenas dizer que todos perdem – e eu não estou falando apenas do jogo. Mas, pelo menos, Annie e Abed continuam amigos.
Quando uma relação entre pai e filho está desgastada, talvez seja a hora de tentar consertar as coisas com um bom jogo de RPG. Pelo menos foi essa a intenção quando a turma propôs uma partida com a participação do personagem Buzz Hickey e seu filho Hank. O único defeito dessa estratégia foi não contar com a competitividade exasperada de ambos os lados e a falta de vontade real de compreender um ao outro. O jogo acaba se tornando um palco para a briga entre os dois, cada um do seu lado dicotômico da situação. Mesmo assim, no final, o resultado até que é satisfatório. Anota aí dica para resolver conflitos com aquela pessoa ~ especial ~. O ator do Buzz é o Mike de Breaking Bad e Better Call Saul, quem já assistiu vai reconhecer a mesma personalidade nesta cena aqui:
Bonus: Britta tenta se reconectar com os pais jogando The Ears Have It, descrito no próximo tópico.
Ansiosos para conquistar a amizade do recém-introduzido personagem Elroy Patashnik, Annie e Abed resolvem chamá-lo para uma jogatina de The Ears Have It, um jogo fictício que lembra o “Quem sou eu?”. Exceto que, nesta versão, em vez de ter um cartão na testa com um nome de personagem você tem orelhas de animais e tenta adivinhar por meio de perguntas qual animal você é. A estratégia funciona horrores e a dupla acaba atingindo seu objetivo. Afinal, quem resiste a um bom party game?
Bônus: Criar um final surreal para a série.
Depois de tudo isso, se você ainda acha eu estou forçando a barra ao dizer que Community é a série mais board gamer que já existiu, te convido a assistir a cena que simplesmente encerra toda a série e tire suas próprias conclusões: