Praga Caput Regni e a preguiça
Intro
Já havia escrito sobre alguns jogos no passado, mas nunca diretamente aqui na Ludopedia. A pandemia e o tempo com saudades deles me fez querer voltar a fazer isso. Como tudo na vida, escrever requer prática, então peço feedback e que me perdoem os eventuais erros e a extensão do texto. Espero que ajude alguém que queria conhecer um pouco mais sobre Praga Caput Regni (PCR, não, não é o exame), o mais recente jogo de Vladimír Suchý (League of Six, Shipyard, Last Will, Pulsar 2849, Underwater Cities ou Cidades Submersas, dentre outros).
Praga Caput Regni e seu tabuleiro giganteeeee...
Preguiça de ler? Uma breve conclusão (TL;DR)
Um jogo interessante em que o objetivo dos jogadores é colaborar na construção da cidade de Praga. Isso é feito a partir de uma engrenagem de seleção de ações que valoriza aquelas menos selecionadas pelos jogadores ao longo do tempo. PCR possui muitos aspectos já utilizados pelo autor em outro de seus sucessos: Shipyard e poderia ser considerado uma obra-prima se não fossem algumas decisões estéticas duvidosas que tiram um pouco o prazer de jogar. Apesar disso, ainda o considero um bom jogo, principalmente por balancear adequadamente o pensamento de longo prazo e as decisões táticas de cada turno (algo também presente no jogo dos navios).
Suchý e Shipyard
Conheço alguns jogos do Suchý e, embora não seja fã de todos, reconheço que seus designs são redondos e possuem uma certa originalidade.
O Last Will, por exemplo, nos faz pensar ao contrário do que a maioria dos jogos: nele, seu objetivo é gastar mais dinheiro e não menos. Esta ideia é muito interessante e é desenvolvida de forma bem amarrada ao tema do jogo. Apesar disso, porém, o sentimento ao jogar foi de algo sem sal, como sinto em relação a muitos worker placements do mercado.
O Cidades Submersas é um capítulo a parte, pois sei que muitas pessoas com gosto parecido ao meu o adoram. Não é que eu desgosto. A única partida que joguei, e talvez aí resida o problema, me trouxe um sentimento de vazio muito grande porque, a todo momento, comparava aquelas cartas e o desenvolvimento do seu motorzinho de pontos com um dos meus preferidos no gênero: o Terraforming Mars (TM). Desculpem-me os fãs, mas aqui não há comparação possível de ser feita: acho o TM bem mais redondo e gostoso. O fim da partida do Cidades Submersas só me fez perguntar à mesa: quando vamos jogar TM de novo? (acho que vou receber umas críticas neste ponto rs).
Momento de falar do jogo do Suchý que mais aprecio: Shipyard (já até escrevi sobre ele no passado). Acho ele excelente: redondo e conciso, repleto de sacadas originais. Nele, o autor consegue aplicar uma pequena mudança na mecânica de set collection: ao construir o seu navio, você coleciona peças dele, mas o tamanho da sua coleção é limitado (por você e pelo jogo). Isso gera alguns dilemas interessantes que casam com os objetivos privados que você tem na mão ("devo focar em navios pequenos repletos de ornamentos ou em um transatlântico gigante que tenha muita propulsão?"). Além disso, a trilha de seleção de ações, embora não muito original, é muito interessante (assim como em Puerto Rico, as ações mais relegadas pelos jogadores passam a ser mais valorizadas ao longo do tempo) e gera um sentimento de tomada de decisão gostoso ao longo da partida. Finalmente, o que o torna ímpar, ao meu ver, é a possibilidade de pensar estrategicamente e a implementação deste plano não é impossível de ser alcançada, mesmo com as diversas decisões e mudanças táticas ao longo dos turnos (a sensação que tenho com o PCR é exatamente a mesma!)
Infelizmente, ainda não joguei o Pulsar 2849, embora tenha muita curiosidade. Quem sabe um dia eu não volte a este texto para atualizá-lo com novas impressões?
O tabuleiro individual é muito agradável
Mas, e o tal do Praga?
PCR empresta a mesma trilha de ações do seu antecessor Shipyard. Porém, aqui, Suchý criou uma engrenagem de ações bem bonita (vou falar de estética mais adiante) que vai girando à medida em que os jogadores selecionam ações e, aquelas que não são selecionadas, vão se tornando mais atrativas ao longo do tempo. O resultado prático é o mesmo, mas em PCR há mais benefícios atrelados às ações.
Estou me adiantando um pouco, então, antes, uma breve introdução temática: o jogo trata da construção da cidade de Praga, coordenada pelo rei da Boemia, Charles IV, na era Medieval. Aparentemente, o autor dedicou um bom trabalho de pesquisa a respeito da cidade, o que gerou até notas históricas sobre os lugares importantes da cidade no manual (não deixem de ler a história dos ovos na ponte Charles). Eu gosto muito disso, embora, no final, como todo bom e velho euro, o tema é apenas uma camada de abstração para facilitar as associações e explicações de regras: o resultado prático mesmo é: "olha, você tem 6 ações básicas para fazer e tentar ganhar o maior número de pontos de vitória possíveis. Ganha quem pontuar mais. Fim."
Tentando ser breve, eis as tais 6 ações:
- Caminhar pela estrada do rei: ao fazê-lo, você coleta recursos básicos (os principais do jogo são ouro e pedra), melhora sua produção destes mesmos recursos e, se chegar até a ponte Charles Bridge, pode escolher uma ficha que te dá uma pontuação extra no final da partida
- Produção de pedras: aqui há uma das decisões difíceis do jogo, pois ao realizar esta ação você pode melhorar a sua produção de pedra e coletar uma mísera pedra ou realizar toda a produção da sua capacidade (que começa no nível 3), mas não aprimorar o quanto produz. As pedras são usadas na construção de fichas que representam o muro ao redor do seu castelo e, algumas dessas fichas, te dá o direito de colaborar na construção do famoso Hunger Wall (veja ação de construção de muro, a seguir)
- Produção de ouro: exatamente igual às pedras. O ouro é utilizado na construção de edifícios na cidade de Praga, alguns destes edifícios permitem que você colabore na construção da famosa St. Vitus Cathedral
- Construção do muro: bem simples, existem algumas fichas de muro abertas e você, pagando pedra e/ou ouro, constrói o muro e o coloca ao redor da sua fortaleza (existem alguns bônus de adjacência que vou pular para diminuir o tamanho do texto). Dependendo do caso, você evolui na trilha do Hunger Wall (o que vai te dar pontos de vitória no final da partida)
- Construção de edifício: bem simples também, escolha alguma das fichas abertas, pague seu custo e, em alguns casos, evolua na trilha da St. Vitus Cathedral
- Melhoria (upgrade) de uma ação: existem algumas fichas que melhoram as suas ações básicas do jogo. Esta é a ação de comprar tais fichas. Um exemplo de ficha de melhoria: "toda as vezes que você produzir pedra, ganhe um ouro."
O que dizer do mecanismo central de seleção de ações?
Além das ações e recursos básicos, ainda há uma trilha de tecnologia que, ao avançar, te permite coletar uma ficha que também te dá um bônus dependendo do que você estiver fazendo.
Estas melhorias de ações também podem ser vistas claramente em Shipyard, e acho uma ótima qualidade do jogo, pois, assim como naquele jogo, você tem um número limitado de ações (no PCR são 16), então sempre surge uma dúvida cruel: "melhoro esta ação para um futuro ou já faço a ação propriamente dita para otimizar meu jogo?"
Acho que faltou explicar o principal que é a já mencionada engrenagem de seleção de ações e como funciona seu turno: ela parece muito com as engrenagens do Tzolkin. Aqui, cada dente da engrenagem possui uma ficha com o ícone de duas ações possíveis. Você seleciona uma dessas fichas, retira-a da engrenagem e escolhe uma ação para realizar, e seus respectivos bônus. Depois, gira a engrenagem e recoloca a ficha na posição de maior custo (assim, ações recém adquiridas voltam para a mesa custando mais caro e ações não escolhidas passam a se tornar mais atrativas).
Finalmente, ainda há a possibilidade de você coletar algumas fichas de vitrais que te dão a opção de jogar mais uma vez naquele turno (novamente, muito parecido com o que você faz com o dinheiro do Shipyard)
Os turnos são rápidos e dinâmicos, o que, em tese, não deveria gerar muito problema de AP (analysis paralysis), mas vou falar um pouco mais sobre isso abaixo.
Beleza, mas isso é bom?
Praga é realmente uma grande cidade
Já mencionei alguns pontos positivos ao longo do texto, mas vou tentar sumarizá-los aqui: o que me agrada muito em PCR é a simplicidade das seis ações e em como escolher uma ação é algo difícil e desafiador: a busca por sinergias é constante e, com um planejamento correto, é possível alinhar decisões táticas a um plano de longo prazo, algo beneficiado pelo fato de todas as ações sempre estarem disponíveis. Este balanceamento entre estratégia e tática é algo que me agrada muito e um tanto raro de se ver em euros deste porte (a grande maioria acaba pendendo mais para o aspecto tático, IMHO).
Outro ponto positivo é que, apesar das minúcias e detalhes, as regras são sempre amarradas às tais seis ações, o que facilita muito o seu entendimento e assimilação: em dois ou três turnos, já dá para ter uma clara ideia do que faz o que e quando.
O fato de você poder melhorar as ações com melhorias ou tecnologias e ganhar bônus ao realizar ações valorizadas é uma via de duas mãos: em termos de jogo permite que o jogador desenvolva combinações muito inteligentes, mas, vez ou outra acaba gerando um cansaço durante a partida já que são muitas coisas para lembrar e algumas podem até ser esquecidas (acho que esta implementação ficaria ótima no BGA hehehe). De qualquer forma, a busca pela melhor sinergia entre ação/bônus/melhoria/tecnologia é bem divertida e a recompensa de conseguir otimizá-la enriquece muito a experiência de jogo.
Finalmente, vou falar de um ponto que merece um tópico próprio: a estética.
O detalhe estético e a preguiça visual
Você abre o tabuleiro e monta as estruturas: a St. Vitus Cathedral, o Hunger Wall e a Charles Bridge são tridimensionais, lembrando aquela árvore do Everdell. Você fica embasbacado: que jogo lindo. Além das estruturas, ainda há a engrenagem acoplada ao tabuleiro e um desenho da cidade de Praga, com a estrada do Rei e o rio no meio. Show, hein? Hmmmm...
Estruturas 3D, detalhes de arte e iconografia: a pastelaria de Praga!
Em PCR, assim como em Everdell, as estruturas 3D atrapalham mais do que ajudam. O tabuleiro é muito grande, e alguns jogadores podem ficar de costas para as construções, causando dificuldade para enxergar o que é o que desta posição (em tempo, dá para jogar sem as estruturas, o que evita este problema).
O desenho da cidade me lembra um pouco aqueles desafios de "Onde está Wally?", com detalhes vistosos, mas que poluem muito o visual, tornando desafiador entender onde se posicionará cada edifício e qual o melhor lugar para cada um. Além disso, o tabuleiro foi projetado para que todas as fichas de melhoria, de muro e de construção de edifícios disponíveis tivessem um lugar dentro dele, o que aumenta ainda mais a sensação de confusão e poluição visual.
"Wally, cadê você, meu filho?"
Este pequeno detalhe, que deveria ser alvo de elogios, acaba prejudicando, e muito, a experiência. As decisões já são complicadas por si só, agora imagine colocar um camada extra de decoração no tabuleiro que desvie a sua atenção a cada novo raciocínio. Isso me lembra um pouco do Agra e do Feudum ("essa rota é do barco ou do zeppelin?"), dois outros jogos com o mesmo problema de projeto. Confesso que só de olhar para esta parte do tabuleiro já sofro de uma certa preguiça mental.
Acredito que isso deva diminuir à medida que jogamos mais e mais, mas, ontem joguei a minha 7a partida e a preguiça ainda continua... rs
Então?
Se superarmos o problema estético (autores de jogos: lembre-se sempre que menos é mais!), encontra-se ali um jogo bem interessante com diversas formas de pontuação e possibilidades estratégicas (já tentei "n" planos, todos com chances reais de vitória), construção de máquina de pontos por meio de sinergias entre as ações, e que privilegia o pensamento de longo prazo, algo raro nos jogos atuais. Além disso, para um jogo deste porte, o tempo de partida também é excelente (em média: 1 hora em 2 jogadores). Finalmente, acho que ainda prefiro o Shipyard, que traz a mesma sensação, mas com mais simplicidade e menos poluição visual. Acho, porém, que ainda há espaço para os dois na coleção.
Veredito: Mantenho na coleção, com um pequena ressalva (uma certa preguiça em encarar o tabuleiro na busca da melhor jogada).