Pense num jogo injustiçado, que é muito melhor do que a simplicidade de suas regras sugere, que alguns até questionam o mérito de ter vencido o maior prêmio concedido a um boardgame, o Spiel de Jahres. Estou falando do único gateway que sobreviveu a vários cortes na minha coleção e hoje figura no meu panteão pessoal ao lado de outros gigantes pesados. Hoje vamos falar sobre Kingdom Builder.
Por que eu gosto tanto desse jogo? Será por que a produção é linda de morrer? Desde a arte belíssima e funcional dos tabuleiros até o charme das pecinhas de madeira? Isso certamente é um ponto adicional, mas não me é critério definitivo para gostar de um jogo. Eu tenho vários jogos feios na minha coleção (estou falando com você, Caylus (a edição velha)). O que me cativou nesse jogo, que me fez passar todos os meus outros gateways adiante (sorry, Carcassonne, Catan, Ticket to Ride e amigos), chegar pra esse e dizer: "você fica", é a profundidade desse jogo. Eu explico:

Kingdom Builder para mim é como uma animação da Disney, a criança acha legal porque é bonitinha e tem musiquinha, o adulto acha legal porque às vezes tem sacadas que ele sabe que a criança só vai entender quando ficar mais velha. Kingdom Builder consegue atuar como uma ponte entre aquele que está engatinhando no hobby, começando a explorar o campo, e aquele que já é cobra criada e já é mais criterioso em suas seleções de jogos. O problema é que muitos daqueles que têm uma bagagem não compreenderam a verdadeira proposta dessa maravilha do design e infelizmente não deram uma segunda chance a ele. Desinformados podem tecer comentários como "é um jogo caótico, depende muito da sorte, você fica preso e frustrado". Perdoe, eles não sabem o que fazem. Permita-me mostrar a luz.

Kingdom Builder essencialmente tem uma regra primordial. O jogo gira em torno dessa regra, ela é objeto de críticas e polêmicas e funciona como um divisor de águas entre aqueles que amam o jogo (este que vos fala) e os que não gostam (...).
Você saca uma carta com um terreno indicado nela. Você deve colocar três casinhas nesse tipo de terreno, sempre adjacentes a outra de suas casinhas já presentes no tabuleiro, se possível. Se não houver adjacências, você pode colocar a casinha em qualquer espaço inicial daquele terreno revelado.
Lembra bastante Carcassonne, só que por outro ângulo. Em Carcassonne você compra um novo tile e tem que colocá-lo em algum espaço cujo encaixe seja permitido, já no Kingdom Builder, os terrenos já estão todos na mesa, você distribui suas casinhas no tipo de terreno selecionado.
Essa regra é objeto de polêmica porque os tabuleiros são maliciosamente desenvolvidos de modo que toda escolha tenha um prêmio e um custo igualmente proporcional. A diferença entre quem acha esse jogo fascinante e quem acha esse jogo caótico está aí: para um admirador dessa obra, cada jogada é um puzzle a parte, cada nova carta sacada é um mar de possibilidades. Por mais caótico que possa parecer (e não é), o jogador experiente vai calcular todos os seus passos de forma ponderada e, acredite em mim, há estratégia nesse jogo além do aspecto majoritariamente tático.
A magia desse jogo está justamente em usar todos os seus recursos disponíveis a seu favor, de modo que você possa explorar ao máximo o potencial da sua regra magna. Vamos rever a regra:
Você saca uma carta com um terreno indicado nela. Você deve colocar três casinhas nesse tipo de terreno, sempre adjacentes a outra de suas casinhas já presentes no tabuleiro, se possível. Se não houver adjacências, você pode colocar a casinha em qualquer espaço inicial daquele terreno revelado.
Agora você vê.
Kingdom Builder não é um jogo de sorte, é um jogo de eficiência. Vamos aprofundar um pouco mais.
Eu divido Kingdom Builder em três camadas:
1. As cartas, que indicam em que tipo de terreno você deve alocar suas casinhas.
2. Os espaços especiais, que lhe concedem habilidades e pontos se você coloca sua casinha adjacente a eles.
3. As cartas de objetivo, que vão nortear o desenrolar do jogo nessa partida.
Além do aspecto altamente modular desse jogo, em cada partida são cartas diferentes, tabuleiros diferentes e com orientações diferentes, as outras regras do jogo servem de apoio para que você possa usar todos os seus recursos a seu favor, de modo que você possa ignorar a restrição inicial desse jogo com sucesso. Cada vez que você coloca uma casinha junto a um desses hexágonos especiais que concedem habilidades, para o turno seguinte em diante, além do seu movimento principal (comprar uma carta e alocar 3 casinhas naquele tipo de terreno), você pode também usar a suas novas habilidades especiais a cada turno.

Essas habilidades te permitem construir uma casinha adicional em um terreno específico, construir em terrenos onde normalmente não seria possível, como por exemplo, na água ou nas montanhas, deslocar suas casinhas para outras regiões e até saltar com elas para outros espaços. A flexibilidade disso é que você pode optar por utilizar essas habilidades antes ou depois de cada movimento principal, que é aquele de comprar a carta e colocar as três casinhas.
Em determinado momento do jogo, você tem tanto controle da situação que pouco importa que tipo de terreno você comprou. Você tem tantas dessas fichas de habilidade, tantas opções, que virtualmente falando, você pode colocar suas casinhas aonde você bem entender. Parabéns, você quebrou a banca.
Legal, mas onde eu quero alocar essas casinhas, afinal de contas?
Com quantos pontos se faz uma casinha? Você sabia que chegaríamos a essa parte, não é mesmo? Você já estava suspeitando, vai, pode falar. Jogo estilo europeu, pecinhas de madeira, ilustrações bonitas, tema estilo medieval... é óbvio que tudo isso se trata de
P O N T O S
D E
V I T Ó R I A
Esse jogo é bem matemático, cada jogada é uma conta diferente. No começo do jogo, você tem muitas opções, todos os espaços estão abertos, mas você não quer se comprometer logo cedo. Lembra que mais no começo eu disse que cada recompensa vem associada a um custo? Pois bem, acontece que os melhores espaços, aqueles que concedem as melhores fichas de habilidade, estão localizados nas piores regiões: sejam elas enormes, de modo que você fica preso a elas por algumas rodadas, sempre que você compra mais uma carta daquele mesmo tipo de terreno, ou então, estamos falando de uma região repleta de adjacências infrutíferas, que não vão lhe trazer nenhum benefício e agora você está comprometido com aquelas adjacências.

Simplificando com um exemplo prático. Você compra uma carta de deserto. Você acha interessante colocar sua casinha azul próxima ao hexágono especial na parte superior esquerda da foto. Você ganha a habilidade, que poderá ser usada no próximo turno e está satisfeito com a sua decisão a princípio. Só que você compra outra carta de deserto e as suas próximas três casinhas devem ser colocadas novamente em uma região de deserto adjacente às casinhas previamente colocadas, sendo que não tem mais nada interessante naquela região e mesmo assim você é obrigado a jogar ali. O jogador fica frustrado, "a vida é injusta, o jogo é quebrado, a cigana enganou, o designer é ruim, precisa de house rules", por aí vai...
A diferença entre quem entende a essência desse jogo e quem só quer contar com a sorte, afinal "esse é um jogo de sorte", está nesse gerenciamento de riscos e frustrações em função das perdas. Jogar ali é sempre uma decisão ruim? Aí que tá, depende do contexto, depende de uma série de coisas. Se o jogador não tivesse comprado outra carta de deserto na sequência, teria sido maravilhoso, ele tem uma baita vantagem competitiva, pombas brancas voam, o céu é azul, bardos compõem cantigas épicas em seu nome e "esse é o melhor jogo do mundo, sempre ganho kkkkkkkk". Um jogador experiente pensaria assim
"Eu gostaria muito de obter essa ficha de habilidade para os próximos turnos. Se eu comprar uma carta de outro terreno, eu expando fortemente minhas casinhas de forma estratégica e diversificada. Por outro lado, se eu comprar outro deserto na sequência e a probabilidade disso acontecer é de 4/24, então eu terei perdido o turno seguinte. Vale a pena eu arriscar essa jogada?"
Não tem resposta certa. Esse é o sabor da aleatoriedade, a emoção do force a sua sorte, push your luck. Ganhar e perder fazem parte do jogo, a sorte é igual para todos, o que você faz com ela é o que determina a sua postura diante do jogo.
Outro exemplo ainda na imagem acima. Imagine que você seja o jogador laranja, sacou uma carta de floresta e gostaria muito de adquirir aquela ficha de oásis à direita do tabuleiro. O terreno de floresta ali não é tão grande, mas fatalmente ele está adjacente a dois terrenos inúteis naquela situação, que são os de campos (verde claro) e os de campos floridos (rosa). Qual é o raciocínio sensato? "Se eu colocar minhas casinhas aqui, eu ganho a habilidade, mas sei que tanto os terrenos de campos, quanto campos floridos estão moderadamente comprometidos. As chances disso acontecer são de 8/24"
Um jogador experiente usa as fichas de habilidade em seu favor, de modo que ele possa burlar essa regra. Você pode fazer isso tanto para eliminar adjacências, quanto para criar outras adjacências mais interessantes. Uma última vez:
Você saca uma carta com um terreno indicado nela. Você deve colocar três casinhas nesse tipo de terreno, sempre adjacentes a outra de suas casinhas já presentes no tabuleiro, se possível. Se não houver adjacências, você pode colocar a casinha em qualquer espaço inicial daquele terreno revelado.
As regras não dizem em qual terreno você deve colocar. Se você tem mais do que um terreno daquele tipo com casinhas ali presentes, você naturalmente vai escolher aquele que lhe renderá mais frutos, digo, pontos no futuro. Ali na regra acima, eu descrevi com base na carta que você saca. Você saca uma carta e deve colocar três casinhas. Acontece que ela também é válida para casinhas colocadas através das habilidades. Em outras palavras: você tem uma habilidade que lhe permite colocar uma casinha nova em um campo florido. Se você não tem nenhuma casinha adjacente a esse campo florido, você pode colocar essa casinha no campo que você quiser, meu querido, vá ser feliz!
(já tinha muito texto sem imagem, imaginei que você estivesse cansado, então coloquei uma imagem fofinha só pra quebrar a dinâmica)
Voltando aos trabalhos. Você pode usar a habilidade da ficha para criar essas novas adjacências mais lucrativas, ou ainda, se você preenche completamente aquele campo, mas ainda tem que colocar casinhas naquele tipo de terreno, adivinha, a próxima casinha é livre para ser colocada em uma nova região daquele campo, minha jovem. Liiiiiiiberdade.... é correr pelos céus... (eu sei que você leu cantando)
(tá, parei, juro)
Você também pode usar as fichas que movimentam casinhas para eliminar certas adjacências ruins. Se você só tem uma casinha adjacente ao terreno que você comprou na carta, você pode, antes de executar sua ação principal, usar a habilidade para remover aquela casinha de lá e, agora, tecnicamente você pode colocar suas novas casinhas na região que você quiser daquele tipo de terreno.
Um dos aspectos mais interessantes nesse jogo é que quantidade não necessariamente é qualidade. Sim, você pode fazer mais pontos com menos casinhas e com menos fichas de habilidade também. As fichas em si nem concedem pontos diretamente, elas te ajudam a chegar lá, mas com grandes poderes vêm grandes responsabilidades...
(você estava esperando uma imagem do homem aranha aqui que eu sei)
As cartas que determinam como o jogo será pontuado que estabelecem as regras do jogo. Então, nem só de habilidades extras vive o homem. De nada adianta se as suas muitas casinhas estão mal localizadas. Recapitulando o fluxo desse jogo.
1. No começo você quer adquirir boas fichas de habilidade que vão lhe auxiliar no jogo, mas ao mesmo tempo você não quer comprometer suas adjacências assim tão cedo, caso você saque uma carta daquele tipo de terreno em particular e fatalmente tenha uma bendita casinha adjacente a ele.
2. No fim, você provavelmente já tem uma quantidade razoável de fichas de habilidade, mas ao mesmo tempo, muitos terrenos com adjacências comprometidas. Todas as áreas do tabuleiro mal ou bem já estão ocupadas por suas casinhas e pelas casinhas dos adversários (só pode haver uma casinha por hexágono). O que você quer agora é otimizar o valor de suas casinhas. Pontos por casinha. Você não está mais tão preocupado em conseguir novas habilidades, o jogo está acabando, só quero saber de pontos agora.
É muito interessante como no começo do jogo você tem muitas possibilidades de alocação e poucas possibilidades de ação, mas, do meio para o final do jogo, a curva se inverte e você agora tem muitas possibilidades de ação, mas poucas possibilidades de alocação pois a maioria dos melhores espaços vai sendo ocupada.
*você pode também usar suas casinhas para bloquear o adversário e negá-lo alguns pontos preciosos, ou ainda, com as habilidades que lhe permitem colocar mais casinhas por vez, acelerar o final do jogo, mesmo que as casinhas que você colocou através dessas habilidades não estejam em posições ótimas.
A última rodada do jogo é desencadeada quando alguém fica sem casinhas. São 40 casinhas por jogador, você sempre coloca pelo menos três casinhas por vez, sendo que outras fichas te permitem colocar mais, então é muito comum colocar 4, 5, às vezes mais casinhas por jogada, mais para o meio do jogo. O jogo tem algo em torno de 10 rodadas em média, a depender do desenrolar da partida, mais fichas de habilidades que permitem colocar mais casinhas por vez, por exemplo.

Mesmo que você possa ser o cara mais azarado do mundo e, por mais que você tenha lido esse texto e esteja confiante de que sabe o que está fazendo, extraindo o maior valor possível de cada casinha cirurgicamente colocada nesse tabuleiro lindo, esse jogo é relativamente rápido, então você não vai ter aquele sentimento amargo de quem ficou pendurado no jogo por mais de uma hora, sendo que você deu muito azar e teve que esperar até o fim da partida com o seu jogo mal desenvolvido, enquanto seus amigos desfrutavam da partida lépidos, faceiros e serelepes e você só queria mesmo que aquela partida acabasse logo para que vocês pudessem jogar outra coisa o quanto antes. Com jogadores experientes, uma partida pode levar 20 minutos.
Em resumo:
Prós:
- Jogo lindo, produção fantástica, componentes de alta qualidade.
- Simples de aprender, mas com uma boa profundidade estratégica, agrada novatos e veteranos (de bom gosto)
- Rejogabilidade virtualmente infinita, sobretudo se tiver a versão Big Box com todas as expansões. Mesmo usando a mesma configuração de tabuleiros e cartas de objetivo, só a ordem diferente das cartas de terreno muda drasticamente o desenrolar do jogo.
- Partidas rápidas e dinâmicas (*se jogadas com pessoas não propensas a Analysis Paralysis)
- Boa escalabilidade. Esse jogo joga bem com 2 ou com 5 pessoas, o que muda é o feeling. Com 2 pessoas você tem um campo mais aberto e mais controle sobre o que o adversário está fazendo, com mais pessoas, o controle é menor, mas o tabuleiro se preenche mais rápido, fazendo com que os terrenos se completem mais rápido e novas áreas podem ser exploradas.
Contras:
- Pode gerar Analysis Paralysis em alguns jogadores (quando a pessoa fica muito tempo pensando numa jogada)
- Setup um pouco chato de fazer, sobretudo se você quer usar os tabuleiros das expansões
- A Big Box tem tudo, TUDO, TUTTO, mas ocupa um espaço imenso na estante ("Big Box", sacou?) e é complicado de sair levando por aí, caso vá jogar na casa de outra pessoa
- Ainda assim, depende um pouco de sorte e uma maré de azar pode gerar frustração
- Não tem tema, esse jogo é bastante abstrato (quem precisa de tema quando se tem hexágonos coloridos, casinhas de madeira e pontos de vitória? D'oh)
(imagem com referência à animação da Disney só para o parágrafo lá do começo não passar despercebido)
Por hoje é só, pessoal.
Obrigado pela leitura.
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