No nosso canal, agora vamos também fazer entrevistas por escrito com pessoas envolvidas com o desenvolvimento de jogos de tabuleiro no Brasil. O objetivo é o de conversar sobre questões comuns e os desafios colocados para a produção de jogos não apenas aqui no país, mas que também reflitam o amadurecimento de uma escola de designer brasileira, por assim dizer.
Para a segunda entrevista, convidamos o designer e editor Gabriel Santana (Gabs Santana) para falar um pouco sobre “Vela”, primeiro lançamento da editora mineira "Galbs Games", além de outras questões atuais e pertinentes, tais como: a cultura brasileira como tema nos jogos de tabuleiro, a questão ambiental na produção de jogos, a interação entre o lúdico e a abordagem às questões tematicamente complexas, dentre outras. O resultado foi excelente e esperamos que vocês também gostem e comentem ao final, pois ficaremos bastante felizes em ampliar a conversa. Agradecemos demais ao Gabriel, que foi super solícito e nos disponibilizou as imagens que ilustram a entrevista. Segue a entrevista, na íntegra:
Você poderia se apresentar e falar um pouco sobre sua experiência como desenvolvedor de jogos de tabuleiro? Como surgiu a ideia de retratar a mineração em Minas Gerais e os seus problemas laborais e socioambientais?
Oi! Primeiramente obrigado pela entrevista
Eu sou o Gabriel Santana, mais conhecido como Gabs, designer do Vela e de alguns outros jogos da Galbs Games junto com o Felipe Galery. Minha experiência com o desenvolvimento de jogos de tabuleiro começou no Vela, mas antes disso tive várias experiências no meio de jogos digitais, nas áreas de trilha sonora, gamedesign, e direção. A ideia de retratar a mineração surgiu primeiro como uma adequação do tema à mecânica tridimensional de revelar peças, mas logo foi bem além. O desenvolvimento do jogo começou pouco depois do crime da Barragem de Brumadinho aqui em Minas Gerais. Eu acredito muito nos jogos de tabuleiro como uma forma de arte, e assim como o cinema, a literatura, etc, eles podem ir além do entretenimento e trazer um pouco da nossa realidade, do que o país vive, do que Minas Gerais vive. A devastação ambiental e social causada pela mineração é algo que sempre impactou muito nosso país, e vimos essa oportunidade, quase que uma necessidade, de trazer isso em um jogo que naturalmente pedia um tema de mineração.

Felipe Galery e Gabriel Santana
Vela foi lançado em 2019 pela Galbs Games, ano de estreia desta editora em que você também é um dos responsáveis. Poderíamos dizer que Vela e Galbs Games nasceram juntos? Como ocorreu esse amadurecimento entre projeto de jogo de tabuleiro e editora?
O Vela e a Galbs Games nasceram bem juntos, inclusive comemoramos o aniversário da Galbs no dia que fizemos o primeiro protótipo do Vela, de tão importante que ele foi na consolidação dessa ideia de montar uma editora. Quando eu comecei a desenvolver o Vela o Galery já estava desenvolvendo o Marãná e vimos que a gente tinha ideias muito alinhadas do que um jogo pode ser e do que uma editora pode ser. Tínhamos muitas ideias de como fazer jogos em uma produção mais horizontal, com temáticas mais sociais e brasileiras. E o Vela foi o laboratório de todas essas ideias, vimos na prática o que funcionava e o que não funcionava, o que a gente era capaz de fazer e para onde queríamos ir com tudo isso. Na prática foi uma loucura criar um jogo tão complexo e uma editora simultaneamente em tão pouco tempo, mas ambos os resultados foram muito melhores do que a gente conseguiria prever!
Equipe da Galbs Games
A arte foi assinada por Débora Mini e Deise Lino. Como se deu a participação das artistas no desenvolvimento do projeto?
A Débora e a Deise são formadas em Cinema de animação e artes digitais pela UFMG e conhecemos o trabalho delas através de outros amigos artistas. Achamos que o estilo tinha tudo a ver, convidamos e elas adoraram a proposta! Elas têm o costume de jogar jogos de tabuleiro e combinaram todas essas referências e experiências para criar uma arte que conversasse com tudo: a estética do século XVIII, da companhia mineradora Vela (misturando o lúdico, o sarcasmo e o sombrio), da cultura de Minas Gerais e dos jogos de tabuleiro em geral. Quem quiser conhecer melhor o trabalho delas pode seguir o coletivo que elas têm no Instagram, @art.donnas!
Débora Mini e Deise Lino
No site, a Galbs Games anuncia que evita o uso de plástico nos seus jogos, como uma preocupação ambiental, e sempre buscas por materiais nacionais. Como vocês pensaram na produção de Vela em relação aos componentes e custo geral?
A gente tenta evitar o uso do plástico, tanto pela questão ambiental quanto pela experiência sensorial. Jogos de tabuleiro tem algo muito único que é essa interação manual com os componentes, o toque e o barulho das pecinhas de madeira é um detalhe muito gostoso no jogo. Foi uma escolha que deixou o jogo mais caro mas também deixa todo mundo que joga encantado com a qualidade dos componentes. É sempre uma escolha complicada esse balanço entre preço e qualidade.
Vela apresenta diversas mecânicas diferentes e integradas. Você poderia falar se houve influência de outros jogos e/ou game designers no seu desenvolvimento?
Por incrível que pareça, o Vela nasceu primeiro como mecânica e depois como temática. Eu queria fazer um jogo que explorasse a tridimensionalidade, o uso de peças empilhadas aleatoriamente e a diferença de alturas limitando as ações como mecânica. A ideia de revelar uma peça do topo da pilha e ela causar um efeito pedia a temática de mineração, e a partir daí mecânica e tema andaram bem juntos na criação, cada um puxando novas ideias para o outro. Minha única referência nos jogos de tabuleiro foi o Survive, com a colocação de peças de terreno cada hora de um tipo e o conteúdo delas oculto. Mas minhas principais referências vieram dos jogos digitais, em especial o Spelunky. A ideia de montar cenários diferentes totalmente procedurais, mas que ainda assim se interagem muito, e deixar a rejogabilidade infinita me atrai muito, e queria experimentar isso com jogos de tabuleiro.

O jogo é dedicado à memória dos mortos pela mineração em Minas Gerais. Você poderia falar um pouco como se deu a pesquisa sobre o tema para o desenvolvimento do jogo?
O tema é muito vivo pra gente aqui em Minas Gerais, não é apenas algo no noticiário, é algo que acontece perto de gente que a gente conhece. Conheço muita gente tanto de Brumadinho quanto de Mariana, já estive em ambas as cidades algumas vezes antes da queda das barragens e a história sempre se repete: a mineradora arrasa socialmente e ambientalmente as cidades e tem pouca ou nenhuma consequência sobre isso. O risco de cada “tragédia” é calculado e o lucro compensa, não existe punição e nem fiscalização real para o que acontece aqui. Como eu escrevi no manual, Vela é um jogo, uma denúncia e uma memória. Uma tentativa de registrar o que acontece em Minas Gerais e uma forma de luto pelas vítimas do crime em Brumadinho.
O jogo fala não só sobre mineração, mas também, de certa forma, sobre a história de Minas Gerais. Como você considera a importância da temática da cultura/história mineira nos jogos de tabuleiro?
A história da nossa mineração é marcada por crimes contra a vida não é de hoje, mas desde a fundação de Minas Gerais, com a escravidão. Decidimos fazer o jogo se passar no século XVIII também por isso, para mostrar que é um problema muito antigo. Minas Gerais tem uma história e uma cultura muito ricas, que merecem ser contadas e dão excelentes temas para jogos, tanto nas partes bonitas quanto nas sombrias. Jogos são uma forma muito imersiva de contar essas histórias.
Em Vela, um tema complexo é problematizado por meio de um jogo de tabuleiro. Além da citação direta à cultura e história brasileiras, o jogo proporciona uma reflexão crítica sobre uma temática relevante em diversos aspectos: social, cultural e ambiental. Como você pensa essa interação entre o lúdico e a criticidade, é possível um jogo ser divertido e ao mesmo tempo denso e complexo quanto ao tema?
Acho que existe muito espaço para ir além do entretenimento nos jogos de tabuleiro, sem perder a diversão e o lúdico, e que isso é pouco explorado. Nos filmes, nos livros e mesmo nos jogos digitais é fácil encontrar grandes títulos que misturam o entretenimento e a crítica. Star Wars e Final Fantasy 7 por exemplo, para citar dois famosos. Nos jogos de tabuleiro temos um ou outro que faz isso, como o This War of Mine, mas ainda é um movimento muito tímido.
O jogo poderia trazer outras temáticas, como, por exemplo, uma mina de Anões com alguns Orcs à espreita, se vocês quisessem, claro, mas fez questão de abordar um tema polêmico e atual, sem deixar de lidar com a fantasia, mas com referências culturais brasileiras, como o Caboclo d´Água. Qual a importância para você, como desenvolvedor, e para a Galbs Games, da abordagem de temáticas brasileiras em jogos de tabuleiro modernos?
Como desenvolvedor eu acho que trabalhar bem o tema é fundamental e boa parte das vezes é negligenciado. Se eu tiver por exemplo a ideia de fazer um jogo usando a mecânica de leilão, eu não vou parar na primeira ideia, eu vou testar, balancear, refinar, testar… Até ela funcionar bem para aquele jogo. Eu acho que o mesmo cuidado deveria ser tomado com a temática. Minha primeira ideia para o Vela naturalmente foi de colocar anões, goblins e dragões, inclusive os primeiros protótipos tinham essas criaturas provisoriamente. Mas daí vem o mesmo trabalho: pensar, refinar, testar… Até chegar em algo que faça mais sentido para o desenvolvedor, para o público e para o jogo. Como editora, eu acho que entram ainda várias outras questões: o que eu quero publicar, o que eu acho que posso acrescentar para as pessoas, para quem eu quero dar voz? Temos uma cultura muito rica, uma história muito complexa e achamos fundamental falar sobre isso, o jogo fica mais tangível, mais próximo da nossa realidade.
O manual do jogo trabalha sempre com um humor ácido, fazendo referências irônicas sobre a preocupação da mineradora com as condições de segurança da mina. A questão da exploração da força de trabalho dos mineradores e da exposição das suas vidas ao perigo pela mineradora aparece em diversos momentos do jogo: nas mecânicas, nas cartas, na conclusão e até mesmo como critério de desempate, desaguando na questão 'quem realmente ganha o jogo?'. Como se deu o desenvolvimento dessa questão, ou seja, pensar um jogo que, apesar de competitivo (um aspecto da alienação e da concorrência entre os próprios mineiros, estimuladas pela mineradora), apresenta os verdadeiros adversários indiretamente, como a 'mão invisível' e a própria companhia de mineração?
Acho que o humor é uma forma de manifestação muito valiosa porque ele consegue acessar as pessoas criando uma memória afetiva, inclusive isso é fantástico de se ver quando a gente joga com crianças. Eu quis retratar a mineradora Vela de forma bem cômica mas sem deixar de mostrar o cinismo e a ganância dela. Muito semelhante à realidade, onde a mineradora vai à tv em horário nobre depois de cometer crimes e tenta criar uma imagem de empresa responsável. Na jogabilidade essa relação entre o trabalhador e a empresa aparece desde o objetivo do jogo: o vencedor é aquele que coleta mais riquezas para a Vela e seu grande prêmio é receber o título de funcionário do mês. É comum encontrar jogos onde seu personagem é alguém servindo a aristocracia e seu objetivo é deixar o patrão (frequentemente o rei) rico ou contente. Quisemos escancarar o quanto essa relação pode ser cruel e não precisa parecer um conto de fadas só por estar em um jogo de tabuleiro. Olha só, o próprio nome da mecânica “alocação de trabalhadores”! Dá outra entrevista inteira pensar de quantos pontos de vista diferentes a gente poderia trabalhar isso. Inclusive o jogo tem muitos detalhes sutis. Os mineiros têm formato de picareta e não de pessoas pois para a Vela eles são apenas ferramenta de trabalho, todos idênticos. Não existe nenhuma ilustração mostrando pessoas no jogo, é tudo impessoal. O verso das cartas mostra a companhia grande e imponente no centro e o capacete do trabalhador com a chama apagada no canto. A sutileza está toda ali para quem captar, mas a questão de Brumadinho também está explícita no fim do manual para que a memória não se perca.

Ao contrário da Galbs Games, muitas editoras nacionais têm optado comercialmente por lançar exclusivamente jogos de designers estrangeiros no mercado nacional, como você considera o impacto disso na formação e no trabalho dos desenvolvedores brasileiros? Você poderia narrar um pouco sobre as dificuldades específicas no desenvolvimento e no lançamento de Vela?
A gente transita muito no meio dos desenvolvedores e vê que existe muita gente fazendo um trabalho de gamedesign muito bom no Brasil. Em eventos como a Oficina do Playtest, um encontro de desenvolvedores semanal, a gente joga jogos de excelente qualidade e que os desenvolvedores não encontraram nenhuma editora com interesse em publicar. Acho que existe uma insegurança e isso cria um ciclo que se alimenta: as editoras não publicam jogos nacionais, consequentemente o público não compra jogos nacionais, e assim cada vez mais existe uma insegurança sobre eles. Acho que cada jogo que consegue romper essa barreira abre espaço para uma transformação do mercado, espero ver isso agora com o Cartógrafos sendo indicado ao Kennerspiel des Jahres. Sobre as dificuldades específicas do Vela, as principais foram encontrar como produzir os componentes e divulgar o jogo com um alcance significativo, porque não existe uma grande estrutura ou uma fórmula para isso, fomos reunindo informações aqui e ali.
Poderia nos falar sobre e como anda o desenvolvimento dos outros projetos da editora: Interceptor, Lençóis e Marãná?
Claro! O Lençóis e o Interceptor foram produzidos para os concursos da editora estadunidense Buttonshy Games. O Interceptor inclusive ganhou o concurso que participou, foram 228 jogos participantes do mundo inteiro! Os dois vão ser lançados juntos muito em breve. O Lençóis é um jogo que se passa nos Lençóis do Maranhão e do Piauí. Possui apenas 18 cartas, bem leve mas muito estratégico, para 2 a 6 jogadores. O Interceptor possui 20 cartas (todas idênticas!), para 4 jogadores, e trata de política brasileira, onde um jornalista e um hacker investigam um juiz e uma ministra que estão trocando propina e mensagens secretas. Já o Marãná é um cardgame com 90 cartas (sem pacotinhos extra) para 2 jogadores, inspirado em cultura indígena, e está sendo desenvolvido principalmente pelo Galery. O plano era lançar o financiamento coletivo dele no Diversão Offline, mas adiamos para o segundo semestre. Ele tem um grande trabalho de pesquisa cultural por trás, que publicamos semanalmente na página @maranacards, vale a pena acompanhar.

Deseja deixar alguma mensagem final para os leitores/jogadores?
Agradeço muito a oportunidade da entrevista, e quero deixar um convite para conhecer nossos jogos e acompanhar a Galbs Games nas redes sociais
Acreditamos que jogos podem ser muito mais do que eles já são, e que o Brasil tem um potencial incrível nisso
Ah! E nosso site está em reforma, mas quem ficou interessado no Vela pode entrar em contato pelo nosso instagram @galbsgames! Obrigado pela leitura!