1776. As 13 Colônias, unidas na tinta que correu da pena de Thomas Jefferson, promulgam e divulgam a Declaração de Independência dos EUA, avisando o Rei da Inglaterra que eles são agora um povo livre e autogerido, que não aceitará ordens e privações impostas por um governo estrangeiro. Foi o primeiro caso na história, ao menos nessa dimensão, e isso fez com que as demais colônias (incluindo o Brasil) gradualmente se tornassem estados por conta própria, e não mais uma fonte de matéria prima e depósito de condenados e tráfico de escravos. Uau! Falando parece fácil, mas não foi. Cada linha da Declaração de Independência de Thomas Jefferson abria novos horizontes na consciência humana. Por exemplo, a frase que abriu este artigo.



(Acabei fazendo uma introdução longa, porque eu adoro o tema. Se quiser pular direto para o jogo que tem uma mecânica que achei única e muito legal, desça para o subtítulo)

Pensemos bem. Nessa época, havia escravidão, tráfico de escravos, imobilidade social, sistemas de castas, e os únicos cidadãos eram os homens (apenas os homens) maiores de 14 anos de idade. Teoricamente, eu poderia ir até a sua casa, amarrar você e vende-lo como escravo se você não fosse um homem maior de 14 anos e, por esse motivo, amparado pela lei e com direito a defesa e representação. Então imagine só o que essa frase fez com as pessoas da época onde isso era possível. Imaginem como deve ter sido difícil e necessário convencer os demais signatários (de estados escravistas e abolicionistas ao mesmo tempo) da Declaração, com toda essa carga de novidade e fraternidade incondicional.

E, com o advento das Nações Unidas, chega a Declaração Universal dos Direitos Humanos, claramente inspirada nas palavras de Jefferson:

“Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade. Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.”

1787. Após a guerra contra a Inglaterra, que não aceitaria que um povo sob sua jurisdição tomasse conta de si mesmo, as 13 Colônias se depararam com a necessidade de consolidar sua situação como uma nação, diplomaticamente e também para a proteção do povo e suas fronteiras, mas agora DE SI MESMOS. No dia 28 de setembro de 1787, os delegados das 13 Colônias promulgam e divulgam a primeira constituição da história da humanidade. Parece fácil falando, mas não foi. Por exemplo, não conseguiram incluir os Direitos Humanos na Constituição, tarefa que ficou para emendas futuras (a primeira em 1791), visto que os delegados não conseguiram concordar nos termos em 1787 e também não queriam debater por mais tempo (estamos falando de meses) e arriscar não conseguirem ratificar (nas 13 Colônias) os termos em que já concordavam.

“We the People of the United States, in Order to form a more perfect Union, establish Justice, insure domestic Tranquility, provide for the common defence, promote the general Welfare, and secure the Blessings of Liberty to ourselves and our Posterity, do ordain and establish this Constitution for the United States of America.”

Constituir um país de dimensões continentais onde (acredito) aproximadamente 50% da população são escravos, o Oeste não foi explorado, no sul (Louisiana) e norte (Canadá) estão os franceses (que acabaram de passar por uma revolução, guilhotinaram quase todas as pessoas que já tiveram cargos de governo (e portanto relações com os EUA) e agora estavam guilhotinando os líderes recém-eleitos), não é fácil, pois cada artigo da constituição possui motivos.

Um dos artigos no jogo é sobre a distinção dos poderes executivo, legislativo e judiciário. Para nós, isso é natural; mas na época não era. Esses poderes existiam, mas o rei podia sempre mudar tudo o que quisesse, podia passar por cima do que quisesse. Agora o presidente ficaria limitado ao executivo, tendo que acatar as decisões do legislativo e judiciário como poderes independentes.

Outro exemplo de um dos artigos propostos que está no jogo Founding Fathers, lembrando de cabeça agora, era sobre a proteção da honra, soberania e instituições do estado, para manter a coesão e dignidade da nação.

Veja, é claro que manter a coesão e dignidade da nação é uma tarefa do povo, governantes e constituição. Mas quem define o que é “proteger a honra”? Para alguém que enxerga corrupção no governo, uso de força coercitiva, proteger a honra do país seria feito por denúncias públicas (que, segundo esse artigo proposto, poderiam ser vistas como proibidas). Para um autocrata, proteger a honra pública é prender todos que falarem algo contra a política atual do governo. Sentiu a ditatura que esse artigo assim escrito está sancionando? O seu trabalho como delegado de uma das treze colônias é estar presente ali e enxergar que tipos de interesses pessoais e perigosos podem estar escondidos debaixo da letra de uma lei que, de início, parece 100% positiva. Cada artigo foi uma luta tremenda. James Madison, amigo mais próximo e discípulo de Thomas Jefferson, foi o autor da versão da constituição que era mais realista (compreendendo os pontos de vista de mais Colônias) e que foi adotada como base para os trabalhos.

Mais tarde vieram as emendas da Bill of Rights, também encabeçadas por James Madison, como esta sobre a liberdade religiosa, de imprensa, de expressão e de convenção, que foi copiada mais tarde para inúmeros países:

Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of grievances.

Parece natural para nós hoje, né? Pois é, foi tudo obtido a duras lutas. Na época em que Thomas Jefferson era vereador na Virgínia, ele redigiu uma lei para a liberdade religiosa, e foi taxado de ateu pelo resto da vida. O que talvez a gente não saiba é que, antes dessa lei, você podia ser preso (pois é a legislação da época) por não ir à igreja anglicana (e apenas anglicana) nos domingos. Que tal? Lembre-se ainda que, na igreja anglicana, a figura máxima é o Rei da Inglaterra. Que tal?

Aproveitando, já que está para sair o jogo BRAZIL, será que alguém não se anima a fazer um artigo-história sobre o Brasil para ambientar nossas futuras partidas?

Como funciona o jogo?

Confesso que fiquei maravilhado com a sequência do jogo. Foi uma aula de board game design, ver como dá para criar algo tão profundo e ao mesmo tempo simples. A mecânica é muito diferente do que já vi em qualquer jogo, e achei, muito, muito legal!

É um jogo competitivo para 3-5 pessoas e funciona legal com 3, mas achei que 4 pessoas é um pouco melhor que 3. 



O objetivo é ganhar pontos ao aprovar artigos que são da sua vinculação política, ao participar das comissões e ao conseguir o apoio dos estados.
Para votar cada artigo, você baixa cartas com os representantes de um estado votando “sim” ou “não”. No final da rodada, se tiver uma maioria no sim, ele é aprovado e os que votaram sim ganham pontos. Os que votaram não ganham um prêmio de consolação: são eleitos para o comitê de redação (“salinha dos fundos”), onde uma maioria lá também vale pontos, mas enquanto não tiver maioria, seus representantes ficam presos lá e não conseguem votar na próxima rodada. A terceira forma de pontuar é através de influência com as diferentes coalisões: estados grandes x estados pequenos e estados.



Você tem uma mão de 3 cartas sempre, e sempre que gastar uma ou mais na rodada, volta a comprar para ficar com três. Só que as 3 cartas disponíveis para comprar já estão voltadas para cima. Então você já compra sabendo qual estado vai estar na sua mão para a próxima rodada. Você pode até comprar cartas de representantes só para os seus oponentes não conseguirem comprar.

Uma coisa interessante é que você pode mudar o voto de um estado. Se um jogador votar não com um representante da Virgínia, você pode usar dois representantes da Virgínia para mudar para sim. Se ele tiver tempo e conseguir três representantes, ele pode voltar para sim. Parece simples, mas considerando o “drafting” de cartas no fim da vez de cada jogador, vira uma guerra super interessante.



E mesmo que você esteja muito ruim nas votações, sempre dá para focar no comitê ou na influência com os estados. Juntando tudo com o fato de que a vez de um jogador não costuma levar mais que 5 segundos, você sempre tem algo legal para fazer na sua rodada e sempre vai ter alguém de olho no que você está fazendo para não se dar muito bem sozinho. Quando você vê o vídeo de explicação das regras do jogo ou lê o manual, você até pensa “puxa, mas tem jogo aqui? Parece tudo muito solto, ‘a walk in the park’”. Pois é, mas espera só o seu amiguinho na cadeira vizinha ficar incomodado com o que você está fazendo que logo começa aquela disputa muito legal. Acho que foi o jogo com maior interação entre jogadores que eu já joguei. Não exatamente entre jogadores no estilo diplomático, mas onde o que os outros fazem afeta totalmente a sua jogada. É quase um wargame!



Já cheguei a anunciar a minha cópia do jogo para venda quando estava precisando de $, mas se pudesse, ficaria com ele pelos anos. A caixa é linda e dá para deixar em destaque no armário. As únicas coisas que não gosto do jogo é que ele é muito competitivo (meu estilo favorito é cooperativo); que às vezes, para ganhar pontos, você tem que aprovar um artigo “do mal” (injusto para o povo). Isso me faz doer o coração – nem num jogo eu consigo fazer isso. E que cada representante tem uma habilidade especial diferente dos outros e leva muito tempo para você ficar lendo o que cada um faz cada vez que comprar cartas (na verdade, antes de escolher qual vai comprar). Mas a gente acostumou jogar sem usar a habilidade especial de cada representante (exceto a do seu personagem exclusivo).

Para quem quiser um cooperativo muito difícil, muito lindo e totalmente heroico, sugiro Freedom, the Underground Railroad. Esse eu acho que não anuncio para venda enquanto tiver comida na geladeira.