Minha introdução aos jogos modernos veio com Tigris & Euphrates, de Reiner Knizia. Eu não sabia àquela época, e nem conhecia o uso do termo "elegante" para jogos de tabuleiro, mas depois de ter base de comparação com outros jogos é que fui perceber uma das grandes qualidades do jogo: a de permitir uma enorme variabilidade estratégica a partir de um conjunto pequeno de regras. O que se tornou uma das coisas que mais admiro em jogos. Um exemplo que considero uma verdadeira obra-prima é The King Is Dead (ou King of Siam, em sua primeira versão), de Peer Sylvester, um jogo de controle de área em que cada jogador tem apenas oito ações para fazer durante todo o jogo, algumas inclusive idênticas, apenas atuando em cores diferentes, e é um daqueles títulos que deixa os jogadores quase loucos com as consequências de cada uma das apenas oito decisões a fazer ao longo da partida. E o autor parece ser expert em "fazer muito com pouco": é dele também o North American Railways, uma versão "destilada" dos jogos de investimento também bacana.
E, claro, além desses há jogos que são tão simples, mas tão simples, que parece inacreditável que possam ser interessantes. Meu melhor exemplo é o For Sale: li tantas recomendações de gente dizendo que era o melhor filler de todos os tempos que o comprei em 2011, mas ele ficou por meses pegando poeira porque eu lia o manual e pensava: "é só isso mesmo? sério que tem gente que acha esse jogo essas coisas todas?". Até o dia em que eu finalmente o inaugurei. Lá se vão oito anos e, mesmo já tendo procurado, testado e até gostado de vários outros fillers, For Sale continua meu preferido e é sempre a opção pra fechar jogatinas ou jogar enquanto a mesa ainda não completou. A não ser que haja só duas pessoas: aí eu jogo o Fjords.
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Foto: Jormi Boced
Bom, eu sou um grande entusiasta de jogos de trem - da obra-prima de design Chicago Express aos 18XX, de Steam a Stephensons Rocket. Então é óbvio que eu fiquei curiosíssimo quando fiquei sabendo da existência de dois fillers de trem. Um era Paris Connection. O outro era Northern Pacific.
Tratam-se de dois jogos da Winsome Games, que tem (tinha? há rumores que eles vão encerrar as atividades esse ano) um modelo de funcionamento no mínimo curioso. O foco deles é única e exclusivamente design e desenvolvimento de jogos. Alguns são recebidos de designs externos, outros desenvolvidos internamente, e é difícil saber qual é o caso porque depois de um bafafá envolvendo o dono da editora, John Bohrer, e o designer Martin Wallace, ficamos sabendo que boa parte dos "designers" com títulos publicados pela Winsome são pseudônimos do Bohrer. Além disso, o fato do foco deles ser unicamente design e desenvolvimento significa que a produção é, como dizer, espartana. Os jogos da Winsome são comumente algumas folhas de papel A4, cartas em papel sulfite com impressão tosca e um punhado de cubos de madeira, embalados em uma marmita de plástico. E são vendidos apenas por encomenda (100 dólares) - a maioria em Essen, e outros pelo correio, e, ano após ano, sempre esgotam. E mesmo quando aparecem no mercado secundário, geralmente por um preço imoral, vendem rapidinho. Basicamente porque, para muitos desses jogos, o que eles tem de horrorosos têm também de bons. São pérolas de elegância: jogos com um conjunto muito simples de regras mas com incríveis possibilidades estratégicas.
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Felizmente, o modelo de negócios da Winsome não consiste apenas em vender essas versões horrorosas por preços obscenos: eles também licensiam seus jogos para grandes editoras. Wabash Cannonball, por exemplo, passou a ser produzido pela Queen Games como Chicago Express. Aquele Paris Connection ao qual me referi como um dos "fillers de trem", também produzido pela Queen, antigamente era o SNCF da Winsome.
Ano passado, o outro foi também lançado por uma editora grande, dessa vez a Rio Grande: Northern Pacific. Fiquei sabendo dele a partir de um concurso de reviews no BGG, em que um usuário fez uma descrição quase poética do jogo: "Northern Pacific: Cube or train, Cary? Cube or train?" . E fiquei ainda mais curioso quando li a história por trás do jogo, escrita pelo próprio autor: Designer Diary: Northern Pacific and me
A curiosidade que achei mais interessante foi que o autor teve como inspiração o faroeste "Era uma vez no Oeste", em que parte da história envolve alguém investindo em terras por adivinhar, corretamente, que um dia uma linha de trem passaria por lá, e assim Tom Russell (que já afirmou ser uma pessoa de verdade, e não outro pseudônimo de John Bohrer*) resolveu que esse seria um bom mote para jogo de tabuleiro.
*Em caso de dúvidas, consulte a geeklist "Game Designers Who Exist"
Mas Russell conseguiu fazer isso de uma forma tão simples, mas tão absurdamente simples, que chega a ser surreal que funcione. Eu tenho dito que, com um pouco de treino, acho que consigo explicar as regras do jogo em vinte segundos. É basicamente isso:
Há um mapa com rotas que vão de Minneapolis até Seattle. Na sua vez, o jogador escolhe se quer colocar um cubo numa cidade ou se quer colocar um trem em uma das rotas para que ele percorra parte do percurso. Quando o trem chega numa cidade que tem cubos, quem colocou o cubo lá pega de volta o cubo colocado e mais um do estoque. Quando o trem chega em Seattle, quem tiver mais cubos ganha. Fim.
Sim, é perfeitamente possível fazer a mesma pergunta que eu fiz quando li o manual do For Sale (que chega a parecer um jogo complicado se comparado a Northern Pacific): é só isso? Como um jogo tão simples assim pode ter qualquer graça?
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É que pode-se colocar mais de um cubo em cada cidade - até dois num jogo de três jogadores, mais em quantidades maiores (jogam até 6). E aí o jogo vira uma máquina de alianças temporárias, de forçar o adversário a fazer algo que acabe te ajudando, de ir por caminhos que te prejudiquem mas prejudique ainda mais quem está na frente, e assim por diante. "Vou colocar esse cubo aqui, porque tem boas chances da rota passar por essa cidade", pensa Huguinho. "Ah, vou aproveitar e colocar um cubo meu aí também", pensa Zezinho. "Mas nem a pau que vou deixar esses dois ganharem ponto, vou mandar o trem lá pro outro lado", pensa Luisinho. "Ah, então vou colocar outro cubo aqui, mas pera, aí os dois vão se juntar e vão pro outro lado, mas de repente, se eu colocar o trem aqui..."
Acho que deu pra entender, né?
Imagino que o jogo não vá agradar todo mundo, acho que muitos vão achar que ele é simples demais. Mas é tão rápido que vale conhecer. Posso estar sendo precipitado, pois comprei muito recentemente e nem joguei tantas vezes assim, mas estou achando ele genial. Arrisco dizer que o For Sale encontrou um rival à altura.