ON BOARD: Os euro games, comumente, são descritos como pouco temáticos, o que discordo, e seu trabalho, juntamente com toda uma nova leva de designers europeus, oferece uma linha de jogos com extrema inspiração no tema. O que impressiona em seu trabalho é a transformação temática em um conjunto rico de mecânicas e processos. Como funciona essa adequação para você?

VITAL LACERDA: É impossível para mim começar a criação de um jogo, sem ter um tema de suporte. Antes de começar qualquer um dos meus jogos, eu passo um tempo em pesquisa, onde leio e reúno toda a informação que consigo sobre esse mesmo tema. Por exemplo, durante a criação do Vinhos, conhecia todas as castas portuguesas e como era muito inexperiente coloquei todas no mapa do jogo. Resultado; no primeiro playtest, a informação era tanta que nem passamos do setup!
A procura e pesquisa do tema para mim, é uma das partes mais interessantes da criação do jogo, interesso-me por muitos assuntos, gosto muito de recolher dados e aprender sobre eles. É com muito gosto que passo os primeiros meses da criação do jogo a informar-me sobre o tema.
ON BOARD: Durante o design, escolhas mecânicas têm de ser feitas, dá de perceber quando isso acontece em algumas situações em seus jogos. As sessões de playtest, creio, vão reforçando isso. Quão difícil é equilibrar sabor temático e solução mecânica?
VITAL LACERDA: Eu gosto de pegar na situação e formar a mecânica em volta dela. Os playtestings servem para equilibrar e muitas vezes simplificar essas mesmas mecânicas. No CO2 por exemplo, surgiu a ideia das conferências de Ambiente que eu queria incluir no jogo. Estas conferências são sempre oportunidades de troca de novas informações e conhecimento sobre os temas apresentados. Estas trocas de informação acabaram por formar uma mecânica bastante interactiva e semi-cooperativa entre os jogadores que participam nela ao mesmo tempo, valorizando assim a troca de ideias entre cientistas e empresas, reforçando um pouco mais o tema. Julgo que isso ficou bem patente no jogo. Mas para equilibrar o número de pontos e o peso relativo que teriam em relação a todas as outras mecânicas do jogo, não foi um processo fácil. Tempo, intuição, alguma matemática e muito playtesting, são sempre necessários para chegar a um bom equilíbrio, que eu penso conseguir ou pelo menos tento sempre entregar nos meus jogos.
ON BOARD: Vamos falar de seu novo jogo que está chegando aos financiadores em breve. Tive o prazer de jogar The Gallerist. De fato, é um jogo um pouco mais leve, mesmo assim, com uma imensa dose estratégica, mas de um design muito funcional e elegante. Tantas ideias e tantos elementos de forma tão harmoniosa. Como você vê sua caminhada enquanto autor de Vinhos até The Gallerist?
VITAL LACERDA: A experiência que tenho vindo a adquirir, jogo após jogo, e os comentários de todos os jogadores, têm ajudado muito neste percurso. Tenho também trabalhado com uma equipe mais consistente, o que ajuda. Tudo isso faz com que os processos acabem por ser simplificados, mantendo tudo aquilo que eu gosto, como a dificuldade nas decisões, os vários caminhos para a vitoria, a interligação dos elementos, e a grande interação entre os jogadores e a criação de problemas, de preferência insolúveis. Gosto sempre de atirar ao jogador na incerteza, de criar oportunidades que pareçam contraditórias, ou por vezes mesmo, muito semelhantes em valor, mas que o resultado vai depender do caminho seguido pelo jogador. Tento criar contrariedades nas opções. E depois, como me dá muito prazer a sensação tátil nos boardgames, introduzo sempre muita peça a mover de um lado para o outro. Elemento que muitos jogadores não gostam, mas já faz parte da minha identidade.

The Gallerist, o mais novo lançamento de Vital Lacerda
Normalmente, a harmonia (daqueles que a veem) e ligação das coisas acaba por vir através do tema. Eu sei que se comprar uma obra de arte quero valorizá-la, e quanto mais famoso o artista for, mais ela vai valer. Assim, posso vender mais caro, ganhando a possibilidade da comprar outras obras também mais caras. Mas para vender preciso de um comprador e os interesses desses compradores normalmente são diferentes. Deste modo, as variáveis aparecem e são, normalmente, simples. Elas são o preço, a fama do artista, o tipo de comprador, e todas elas estão intimamente ligadas entre si. Depois, gosto de ir um pouco mais longe e pensar: se não tiver ninguém a visitar a minha galeria, nada disto faz sentido. Então, como trazer pessoas à galeria e a ideia aparece, um processo mais simples é o convite. No jogo, terão a forma de bilhetes.
A quem quero eu trazer à minha galeria e que traga vantagens? Quais as pessoas que mais interessam no negócio? Ao visitar uma série de galerias de arte e falar com os donos, percebi que uma festa cheia de VIPs e Colecionadores (VIPscoring) é para ganhar influência, ou umas quantas reuniões com investidores (scoring dos investidores) que queiram apostar no futuro dos artistas e da galeria serão as pessoas certas. E, assim, surgiram os visitantes que acabei por incluir no jogo. Estas festas e reuniões podem ser encontradas sempre que você vende uma obra ou tem sucesso no mercado internacional ou descobre um novo artista. Outras pequenas coisas acabam também por surgir, como, por que vai alguém embora quando compra uma obra? Porque vai mostrar a compra aos amigos, ou porque a presença de gente no lobby quando vai ao mercado internacional. Simplesmente porque é no lobby que esta galeria trata dos seus negócios, é ali o bar da galeria, o local mais agradável. Muitos elementos também aparecem por necessidade de equilíbrio, mas mesmo assim procuro sempre uma solução que faça sentido para o tema. Porque o limite de colecionadores na galeria? Simplesmente, porque se você não vende nada, eles não vão aparecer.
Quando consigo percorrer uma cadeia de acontecimentos que desencadeiam novos acontecimentos e ainda mais outros, todos relacionados entre si, é um processo que para mim é muito intuitivo e enche-me de alegria e acaba por se tornar um jogo que é normalmente refletido nas minhas criações. O maior problema desta linha de criação que tanto gosto, é quando altero o equilíbrio em um elemento e vejo toda a cadeia a ser alterada, e isso torna o equilíbrio e balanço de jogo bastante mais trabalhoso e moroso.
ON BOARD: Em todos os seus jogos, você surge com variações para mecânicas tradicionais dando um ar de inovação muito bem-vindo, fora suas novas ideias que parecem não ter fim. Destaco, como preferências pessoais, a escolha de ações e as feiras em Vinhos, as conferências em CO2, a alocação e resolução em linha e as reuniões em Kanban, as ações de expulsão e o uso da trilha de influência/dinheiro/fama em The Gallerist. Essas releituras surgem já nos primeiros estágios do design? É uma necessidade e exigência sua oferecer este tipo de experiência distinta?
Muita coisa acontecendo em Kanban, uma das características do autor
VITAL LACERDA: É sem dúvida uma exigência minha. Não pretendo criar alguma coisa que já tenha sido feita muitas vezes, tento sempre incluir elementos novos ou, pelo menos, novas abordagens a mecânicas mais conhecidas. Tento sempre vesti-las de forma mais original possível. Eu não compraria um jogo com um tema diferente, mas com mecânicas já existentes em outro jogo. É necessário inovar, não interessa se muito, se pouco, por vezes a mudança de um pequeno elemento ou a introdução de um novo paradigma é o suficiente para que tudo o resto funcione de forma inovadora e diferente. No final, se você conseguir juntar três ou quatro coisas diferentes em todo o conjunto, desde que funcione, recebe um resultado que nunca foi feito. Não é um processo fácil e é muito longo, porque requer muita experimentação por erro e tentativa, muito playtesting, mas todos os jogos têm sempre de apresentar um ‘gimmick’, algo que faça com que eles apresentem um resultado diferente e que possam oferecer aos jogadores a descoberta de novas sensações. O sentimento de estarem a participar em algo que nunca viram.
Quando aparecem, esses pequenos desvios? Nunca sei. Na maioria das vezes, com conversas sobre os problemas que aparecem ou durante os playtests. Outras vezes, depois de muito tempo a pensar sobre um determinado problema. É um desafio muito grande e por vezes adormeço e acordo a pensar nos mesmos e sem solução. Raras vezes esse pequenos bits aparecem cedo durante a criação, outras muito no final. E por vezes nem sequer são mantidos no jogo, porque a mudança é tanta durante o tempo que demora a criar, que, por vezes, deixa de fazer sentido.
No caso do The Gallerist, o uso da influência para pagar a ações de expulsão, surgiu de um playtest e foi a última adição que fiz ao jogo e que só aí eu soube que o ele estava pronto. Posso-te garantir, leitor, que a sensação de compreender que uma adição daquele elemento que procurei durante tanto tempo é o que completa, o que finaliza e te dá o sinal que o jogo está pronto, quando faz click, é a melhor sensação do mundo.
ON BOARD: A ideia da nova edição de Vinhos partiu de quem e por quais motivos? A opção de oferecer um segundo modo de jogo, mais simples, foi um apelo do público? O que podemos esperar do visual e componentes do jogo? Muitos gostam tanto da versão original, deve ser mais difícil agradar os antigos admiradores do que conquistar os novos.
VITAL LACERDA: A nova edição do Vinhos apareceu porque o jogo já estava esgotado há muito tempo e o editor nunca quis fazer um novo print. Assim, esperei que o contrato terminasse e ao receber os direitos de volta, abordei a Eagle Games com a ideia de ter uma nova edição de luxo para um jogo que já é conhecido, que tem alguma procura, mas com a oportunidade de trazer novos públicos a adquiri-lo e a particularidade de trazer dois jogos dentro de uma só caixa. A editora imediatamente adorou a ideia, até porque tinha acabado de fazer uma nova versão do Age of Empires que como vocês sabem e podem confirmar com o The Gallerist, tem um produção que vale um tesouro.
Renderização da nova edição de Vinhos
Eu já há algum tempo que andava a discutir jogar uma versão mais leve do jogo com amigos que tenho que são casual gamers e com os comentários de cinco anos de testes de milhares de jogadores, acabei por perceber perfeitamente o que podia e deveria ser simplificado. Tenho feito novos testes com a nova versão, porque, como com o The Gallerist, eu pretendo que o jogo tenha uma aprendizagem mais simples, mas mantenha a profundidade nas decisões. E, acima de tudo, tenho de gostar de jogá-lo.
Assim, nesta edição, vão poder encontrar dentro da mesma caixa, não só os melhores componentes, muitas extensões e nova arte, mas também a versão original para os puristas e uma nova versão para quem pretende entrar no jogo mais depressa. O jogo terá dois livros de regras distintos, mas utiliza um código de cores para identificar o que é comum aos dois jogos e o que é novo. Essa ideia vai ajudar os jogadores a não terem de ler todas as regras para puderem jogar qualquer um dos jogos. Então planejamos, também, uma nova expansão, a Ilha da Madeira, novos tiles de peritos, a introdução do agricultor e um tabuleiro pessoal com mais uma quinta. Já tenho também o desenho de novas vinhas, caves e adegas mais potentes e valiosas etc. Uma série de novos elementos que podem ser adicionados ao jogo para aumentar a sua riqueza, não só pelo lado da variedade, como também na sua rejogabilidade.
Quanto à nova arte, veremos, de início, também fiquei um pouco cético, porque estive anos a ver a antiga, mas neste momento a trabalhar com o mesmo ilustrador do The Gallerist, há quase um ano, já não consigo imaginar o jogo com outra arte.
ON BOARD: De seus novos projetos, o que mais temos informações é Lisboa. O que você poderia nos adiantar? Ele tem um aspecto econômico forte como em Vinhos?
VITAL LACERDA: O Lisboa está a ser uma nova experiência para mim. Ele tem elementos conhecidos por vocês de meus outros jogos como a inter-conectividade, mas na sua essência é um card game com um tabuleiro (gigante). No Lisboa você vai fazendo audiências com os principais nobres da cidade para reconstruí-la, depois desta ter sido brutalmente destruída pelo terramoto de 1755. O jogo tem uma base histórica muito forte e onde você vai encontrar o Rei D. José, o ministro Pombal e os ilustres arquitetos daquele tempo como personagens principais. O jogo é econômico, mas a economia é manipulada pelas cartas jogadas pelos jogadores. Em certas partidas, esta vai ser muito escassa e, em outros, um pouco mais fácil. Ele também no seu core uma evolução da ação de expulsão do The Gallerist, mas ainda mais potente e mais interativa. Mas a experiência tem sido muito diferente porquê? Porque pela primeira vez eu estou a complementar os meus playtestings com um sistema novo de jogo online em ‘real time’, chamado Tabletopia. Este sistema permite-me testar o jogo com grupos do mundo inteiro e jogar ao mesmo tempo com jogadores que moram na Austrália, na America do sul ou em qualquer ponto do globo. E posso dizer ao leitor que a experiência tem sido mais que compensadora. Não só pelas pessoas que tenho conhecido e falado durante os testes, como também pelas diferentes cabeças, com ideias muito diferentes daqueles a que me habituei com os playtesters do meu país. É muito diferente um jogo com um jogador alemão, ou com um americano, ou até como um uruguaio ou brasileiro, as culturas são diferentes e, como tal, as mentes pensam de maneira distinta, acabando por recolher resultados muito surpreendentes.

Protótipo de Lisboa
ON BOARD: Escape Plan e Dragon Keepers são projetos mais leves e com uma proposta diferente de seus outros trabalhos, este último com sua filha Catarina. Quando veremos o Vital “light” Lacerda nas prateleiras? Você tem muitas ideias de jogos mais rápidos?
VITAL LACERDA: São os jogos mais difíceis de fazer (risos). Não imaginam a dificuldade que é para eu ficar contente com um jogo desses, mas eu sou fã de fillers e tenho de conseguir ter um no mercado, mas ainda não consegui uma solução para algum que fique satisfeito. Não importa se o jogo é grande ou pequeno, se é difícil ou é fácil, mas ele só sairá das minhas mãos quando eu estiver completamente satisfeito com o resultado e ainda não consegui. Para mim, não há nada pior que um autor que não gosta do seu próprio jogo. É preciso estar apaixonado pelo jogo, seja ele qual for. Mas sim, continuo a trabalhar no Dragon Keeperscom a minha filha mais pequena e possivelmente o veremos no mercado mais cedo ou mais tarde, só ainda não sei quando.
Uma proposta diferente em Dragon Keepers
O Escape Plan é de outra liga, não é tão pesado como o The Gallerist, mas também não é um jogo simples. É um jogo que estou a desenvolver há muitos anos, mas ainda não fez clique, mas talvez porque neste momento estou tão absorvido por novos projetos e não encontro tempo ou disponibilidade para o acabar. Mas posso adiantar que está num processo bastante avançado e será uma questão de meses para o fechar. Provavelmente para 2017 ou 2018.
Possível tabuleiro do jogador em Escape Plan
ON BOARD: E sobre Colony on Mars? O que você pode adiantar?
VITAL LACERDA: Este é o meu mais recente projeto e estou muito empolgado com ele. Novas ideias aparecem todos os dias e julgo ter um novo sistema que pode ser muito original. Não posso adiantar muito sobre as mecânicas dele ou como vai funcionar, mas como o nome indica é um jogo que vai ser passado em Marte e que comecei a criar a alguns anos, quando estive a trabalhar num jogo semelhante para uma empresa de jogos de vídeo. Acabei por escrever um documento de 50 páginas com todo o conceito e processo de evolução e a tech tree. O jogo tem sido testado ainda em segredo e o que posso adiantar é que os jogadores vão poder escolher não só a dificuldade da partida, como também o tempo de jogo que pretendem. Ele irá funcionar por missões ou módulos, que podem ser adicionados para formar um jogo mais desafiante e mais longo.
ON BOARD: Seu trabalho e o de seus compatriotas Nuno Bizarro, Paulo Soledade, Gil d’Orey têm muito em comum, tanto que chamo de escola portuguesa de design. Euros pesados, excelentes, com extrema inspiração temática. De onde vem esta semelhança? O que acontece em Portugal para gerar tanto jogos bons? É o vinho que vocês tomam? (risos)
VITAL LACERDA: O vinho ajuda, mas provavelmente o de termos os mesmos gostos relativamente aos jogos. A editora do Vinhos é também a mesma do Madeira e isso ajuda com as semelhanças.
ON BOARD: Falando de mercado brasileiro agora, o cenário dos jogos de tabuleiro aqui cresceu assustadoramente nos dois últimos anos e o público que conheceu este mundo exclusivamente pelos nacionais está começando a tomar contato com jogos euro mais densos e, pela primeira vez, um jogo seu será disponibilizado em nosso país. Para nós que compartilhamos boa parte da história, idioma e tantas coisas mais é uma alegria especial. Aliás, é a primeira entrevista internacional que realizamos em nossa língua pátria. Como é seu contato com o público brasileiro?
VITAL LACERDA: Tem sido muito bom e parece que os meus jogos tem sido muito bem recebidos, vocês não sabem, mas eu frequento o vosso fórum ‘Ludopédia’ para saber novidades e pelo que tenho lido, o pessoal está contente com os jogos. Conheci o João da Fire on Board em Essen e falamos um pouco sobre a nova empresa e os futuros planos e parece que o Brasil já merecia uma empresa assim, que espero que cresça saudavelmente e aproveite muito bem um mercado gigante como o vosso que se encontrava adormecido até agora. Foi um prazer conhecê-lo e também um honra escolherem o meu jogo para o lançamento da empresa.
Tenho também acompanhado a imensa divulgação que o On Board tem feito sobre o The Gallerist e parece que o jogo está muito bem lançado por essas bandas. Agradeço aqui todo o trabalho, as reviews, os vídeos de tutorial e a oportunidade desta entrevista. Com prazer que contribuo com mais um pedacinho para o crescimento do vosso site e ficam já aqui os mais sinceros desejos de muita sorte no futuro do On Board. Fico desejoso de continuar a ver as reviews e vídeos falados em português.
Obrigado a todos.