Olá, apesar de acompanhar bastante e eventualmente comentar, esta é a primeira vez que inicio um tópico no fórum.
Eu sou criador de jogos de tabuleiro, alguns de vocês me conhecem por ter feito o Masmorra, Gnomopolis, e mais recentemente, Passa Palavras e O Bom do Videogame. E além da parte de regras, equilíbrio, etc.. comuns a todos os criadores de jogos, eu estive envolvido em algum grau na criação da arte e do produto de cada um destes jogos.
No Masmorra isso se deu por necessidade, com a urgência de substituir o artista búlgaro que "desapareceu", ali tive que imitar um estilo bem fora de minha zona de conforto para manter a linha visual que tinha sido escolhida para o jogo sem que tal ausência fosse muito sentida; criando também o concept para os personagens dos extras, faces dos dados, etc.
Na época do Gnomopolis eu já estava lecionando escultura e foi natural desenvolver o concept na massa para o visual dos gnomos, que ajudou a direcionar a arte do jogo, fui muito feliz em encontrar o artista ideal para o projeto: Marcelo Bastos que ilustrou o jogo com maestria.

Aí veio O Bom do Videogame, um projeto muito mais ambicioso em sua arte, que contemplaria quase 30 artistas nacionais pinçados a dedo para cada briefing. Dar esse passo de grande investimento de tempo e recursos precisava de muita convicção, que em determinado momento a qualidade da jogabilidade de nosso então protótipo assegurava com seu poder de prender as pessoas às mecânicas e dinâmicas do jogo nos inúmeros eventos que percorremos.
Foi então iniciado esse processo de fazer o jogo sair de artes "emprestadas", típicas de protótipo, e ir ganhando sua identidade. Mas não foi um caminho simples, pois no início, eu e André tínhamos a errônea ideia de que fazer paródias dos jogos conhecidos não traria problemas. Mas ao mesmo tempo, para trazer a tona a nostalgia, um visual mais sério e de acordo com os jogos da época era mais propício que o cartunizado que deveria mais naturalmente acompanhar no caso de paródias, o que nos colocava numa linha de arte que não se sustentaria bem. Perguntei então a um dos donos de uma grande empresa internacional de jogos de tabuleiro de quem tenho um contato mais próximo, e que já teve bastante paródias em seus jogos, se seria este caminho algo tranquilo a ser seguido, e o mesmo foi taxativo ao responder NÃO, pois sua empresa já tinha inclusive levado um grande revés ao esbarrar em direitos assegurados desse tipo, e o que estávamos fazendo seria pior, com grandes empresas dos jogos eletrônicos e por ter a paródia também presente nos títulos.
Como já estávamos com tudo alinhado no caminho da paródia e até acertados com os primeiros ilustradores, foi bem drástico nosso esforço em redefinir tudo que deveria ser feito a tempo de não sofrer maiores perdas. Veio ali a compreensão de que atingir a nostalgia de uma década seria uma tarefa muito mais trabalhosa e delicada, mas que hoje sei também que, muito mais gratificante e valiosa.
Mergulhamos então no cerne dos temas e elementos que faziam daqueles jogos de nossa infância algo marcante e pensamos toda nossa variedade de briefings com muito empenho, por vezes até imaginando como seria aquele jogo caso fosse um real lançamento em 16 bits. E criando o título e logo de cada "cartucho" sem "pisar em ovos" pois muitos nomes que vinham a mente já existiam como jogos reais lançados.
Tendo o André como especialista do tema e eu para tentar direcionar ao artista um briefing que deixasse implícito cada um destes mundos e pudesse permear a memória e o lúdico de cada jogador, seguimos adiante.
Nas ilustrações além destas diretrizes de evocar a nostalgia tendo identidade própria, fazer parecer empolgante e belo também era de extrema importância para o apelo atual do produto, mas muito desafiador, pois, por vezes caminhava na direção oposta da parte da caracterização do período que o jogo retrata. Certos elementos que passariam batidos na época como o guerreiro de tanguinha azul da capa do Golden Axe, seriam hoje percebidas como cômicas e piegas, então o desafio era equilibrar o que poderia ser referenciado e como, para ter o efeito de parecer empolgante agora como a capa de determinados jogos nos eram na década de 90. Outro ponto que eram pontos negativos da época como a baixíssima presença de protagonismo feminino, hipersexualização da mulher, baixas representatividades, etc tinham que ser devidamente corrigidos pois a intenção era de ressaltar com licença poética apenas o que tínhamos de bom na época e tema.
Para cada ilustração foi criado então um briefing e sua pasta de referências, e fui muito feliz no "headhunting" para encontrar o artista certo para casar com cada briefing e por vezes até somando potencialidades como em determinadas ilustrações tendo desenho de um e pintura de outro. O fato de nesse jogo, ser desejável ter estilos diferentes para marcar os "sabores" diferentes de jogos 16 bits, tornava ideal ter vários artistas mas certa coesão ainda deveria ser mantida para obter um resultado que não fosse heterogêneo a ponto de incomodar quando todas essas artes de cartucho estivessem lado a lado.
Aproveitando na parte de concept, alguns personagens eram criações minhas como o próprio Neow, o Oni que aparece no cartucho do Shuriken, O Homem-Onça do Primaeval e o Alienígena com cabeça de cristal do Galaxy Struggle; que claro, os ilustradores redesenharam em seus estilos.







Apesar de não termos o poder de empresas internacionais e eu ser ainda um enjoado detalhista de fundamentos da arte, e deixei isso bem claro desde o contato inicial com cada artista, O Bom do Videogame conseguia atrair a empolgação de cada um dos profissionais com quem tivemos a sorte de trabalhar junto, e isso transparece no resultado obtido nas ilustrações e design visual do jogo. Sendo a seriedade e confiança de cumprir o acordado um ponto chave também nestes contatos que pesava ao meu favor.
Geralmente, para cada ilustração, tínhamos 3 esboços iniciais, de onde escolhíamos o de maior potencial e partíamos para a ilustração onde eu a cada etapa apontava as partes que estavam muito em sintonia com o objetivo e também pedia correções bem pontuais embasadas nos fundamentos: gamut, proporção, anatomia, composição, separação tonal, pontos focais, perspectiva, ponto de câmera, saturação, textura, etc. O que se mostrou um caminho bem eficiente para que em poucas etapas conseguíssemos a conclusão. Alguns logos foram criados pelos próprios ilustradores quando estes tinham a facilidade para tal, outros pelos Designers Visuais que trabalharam no projeto.



nota: os rabiscos em cores esdrúxulas fazem parte da minha direção de arte
Assim fomos obtendo uma ilustração sensacional após a outra, que a cada protótipo ganhavam ajustes e muitos filtros para a impressão sair cada vez mais ajustada, em cada carta do jogo.
A ideia inicial do André de capa para o jogo seria a ilustração de uma locadora, outros sugeriram criar um ambiente mais familiar com a criança jogando em casa; mas estas cenas são diferentes para cada indivíduo, com casas diferentes, companhias diferentes, então, apesar de serem capas interessantes também, poderiam não fazer a ligação desejada com o passado para cada um. Ter as capas dos próprios jogos como foco, refletia esse lúdico na cabeça de cada criança que ficava viajando em cada mundo que aquelas artes refletiam em sua imaginação(mas que em muitos jogos decepcionavam na tela por não serem nada do que a capa prometia, como me lembro bem). Daí fomos evoluindo a ideia com os cartuchos na capa, organizando de maneira a mostrar mais artes, de esconder a maior parte dos logos possíveis para não competir com o logo do jogo, criando uma imagem 3D dos cartuchos empilhados, trabalhando nesse 3D para manter a organização anterior, camadas de filtros e ajustes, pintando detalhes e sombras por cima da imagem e finalmente recortando o Neow para dar o efeito de saindo do cartucho. De fato uma capa "poluída" com uma quantidade alta de pontos focais, que para muitos é uma aberração digasse de passagem, mas que foi feita propositalmente para ser como é, de poder evocar os sabores dos cartuchos da época e mostrar a variedade de boas ilustrações que o jogo conta; Ter as artes mais exploradas sem essa poluição visual ficou para as laterais que na esquerda e direita fazem o visual vertical e, cima e baixo, com o visual horizontalizado para atender cada costume de guardar o jogo na estante. Nessas laterais criei um pedaço de joystick com os elementos do jogo para colocar as informações de jogo também.
E estes Cartuchos eram de fato nosso prato principal da nostalgia do tema, e colocar a qualidade neles nos obrigou a ter o mesmo cuidado com cada outro acabamento dos outros componentes do jogo, sempre levando em consideração o tema e o que já tinha sido criado antes. Como as imagens em pixels dos personagens que criei, o visual das revistas, cadernos de password, livro de regras, etc.
Bom, espero que esse texto possa ter passado um vislumbre do que foi o processo da criação da arte do O Bom do Videogame, mas cabe salientar que não recomendo nem um pouco que os criadores de jogos tomem este caminho a não ser que entendam da área, pois uma arte não condizente com o jogo ou possível tema, pode até afastar as editoras interessadas, além de demandar muito trabalho e investimento.
Recomendo muito que entrem na galeria de cada artista e designer visual que trabalhou neste jogo em seus behances e artstations, procure pelos nomes na relação dentro do livro de regras ou aqui na Ludopedia. Não é de se espantar o motivo deles estarem trilhando caminhos de muito sucesso nacional e internacional, tendo alguns já trabalhado para empresas como Marvel, Fantasy Flight, Paizo, Riot Games, Wacom, etc.
Um Lembrete: O Bom do Videogame está em seus últimos minutos de campanha, clique aqui para conhecer mais sobre o jogo e garantir sua cópia com os extras.