Então, aqui entramos na área da interpretação da lei, que é exatamente o ponto que me fez recomendar muito cuidado. Ao pé da letra, em análise literal do texto da lei, existe sim o ilícito, e é só a interpretação individual, o questionamento a respeito da razão de ser da lei é que vai definir sua aplicação ou não. Passa a depender, portanto, das pessoas que tenham contato com o caso concreto, do tipo de visão que tenham da situação. No meu entendimento, esse artigo da lei tem implícito nele o objetivo principal da lei, que é a proteção do direito autoral de forma prática e efetiva. Retirada essa condição prática, a lei perde a razão de ser, e torna-se algo que conduz do nada a lugar nenhum. Mas esse é MEU ENTENDIMENTO pessoal, como disse. Significa que os casos semelhantes que requeiram minha intervenção profissional, serão por mim tratados sob essa ótica, mas isso não obriga nem as demais pessoas envolivdas, e nem qualquer outra que possa intervir. Mesmo eu, dependendo da situação fática, posso pegar um desvio nesse entendimento, e achar um meio de fazer valer a proteção legal. Tudo depende do caso concreto, e por isso é uma atividade extremamente perigosa, que requer cuidados especiais, e não é nenhum pouco recomendável. Antes que se pense que mudo de opinião ao sabor do vento, explico: existem situações que reclamam uma intervenção, mesmo que aparentemente não estejam lesionando direitos, ou infringindo leis, apesar dos entendimentos pessoais envolvidos. Me permita aqui mais um exemplo (adoro exemplos práticos, porque esclarecem muito): em determinada situação, me vi às voltas com um inquérito de tráfico de entorpecentes. Sempre fui extremamente rigoroso com casos desse tipo, não costumo ser transigente com essas questões, e ao mesmo tempo considero que tenho uma visão bastante liberal a respeito das leis. Nesse caso, a situação era a seguinte: um renomado traficante, que a polícia não conseguia pegar, um belo dia deu bobeira, e foi pego em flagrante delito vendendo em praça pública o famoso lança-perfume. Feita a prisão, rumaram para a casa dele, onde foram encontrados diversos galões da substância, que ele preparava, embalava e vendia. Felicidade geral, manchete em jornais e tudo: um grande traficante havia sido preso! Quando esse inquérito policial chegou às minhas mãos, a decepção: a substância que foi pega com ele passou por um necessário exame toxicológico, para servir como prova material do crime. Examina-se, encontra-se o princípio ativo da droga utilizada, determina-se que a substância é entorpecente e pronto, está feita a prova. Acontece que, nesse caso, o exame foi negativo: submetida a análise química, constatou-se que se tratava, na verdade, de uma solução feita a partir de halls mentholyptus! O cara misturava um monte de coisas, derretia balas de halls e vendia aquilo, como se fosse lança-perfume! Não era, portanto, substância entorpecente! Nem preciso dizer que sua clientela jamais reclamou disso, por questões óbvias, mas o fato é que eu tinha em mãos um traficante que não queria perder, vendendo algo que não era criminoso vender, porque não se tratava de entorpecente. O que me restava então? Arquivar o inquérito, porque a conduta não era criminosa? Forçar a barra judicialmente, denunciando o sujeito tendo em vista sua reputação? Fiquei vários dias em cima disso, estudando e tentando achar uma saída. E numa das madrugadas em claro, veio a solução: denunciei por estelionato! Ele estava, no fim das contas, vendendo gato por lebre! Iludia seus "clientes", aplicava-lhes o engôdo, e auferia vantagem ilícita, induzindo todos a acreditarem, erradamente, que se tratava de lança-perfume. Todos os elementos do crime de estelionato presentes! Resultado: foi condenado por estelionato, recorreu disso, e depois o Tribunal confirmou a condenação! Foi esta alternativa encontrada para punir um indivíduo que precisava da punição, mas que na prática se safou várias vezes. Houve uma interpretação derivada, que afinal das contas acabou surtindo algum efeito: como era reincidente, efetivamente cumpriu pena pelo delito. Mais leve que a do tráfico, é fato, mas não ficou impune.
Então, aí está perigo. O mesmo texto, às vezes, comporta interpretações diferentes, e pode ser moldado, lapidado, para se atingir o fim desejado por outro caminho. Repito: não recomendo a prática, e toda vez que eu escrever que é um entendimento meu, pessoal, não quer dizer que esteja absolutamente certo: quer dizer que naquele momento penso desta forma, mas este pensamento é mutável, de acordo com as circunstâncias. Para mim, no citado artigo 28, as expressões "fruir, utilizar ou dispor", têm por trás delas a presunção de que tal utilização tenha o fim específico de atingir alguma vantagem, financeira ou não. Se não fosse assim, a meu ver a lei estaria incentivando o egoísmo puro e gratuito, e não protegendo a obra intelectual de ataques indevidos, que é o seu escôpo afinal de contas. Mas é entendimento meu...
Comercializar, já é outra conversa. Com relação ao manual original, creio que não há duvida: tem um autor definido, conhecido, que criou aquilo para o fim específico de lucrar com a criação. Apropriar-se dela simplesmente, e vender como se fosse sua, certamente fere os interesses desse autor, e há violação de direitos.
O bicho começa a pegar com relação às traduções, porque há situações em que elas podem ser consideradas trabalhos originais, dada a distância que as separa do manual escrito na língua de origem. Normalmente são trabalhos derivados, baseados num original escrito em outra língua, guardando direta relação com eles. Nesse caso, sua disponibilização é bem limitada. Pegue como exemplo as minhas próprias traduções, publicadas aqui na ludopedia. Faço um trabalho evidentemente derivado do original, procuro manter até o mesmo número de páginas, e sou fiel ao máximo possível àquilo que li no original em inglês. Também não altero os créditos, que permanecem todos lá, escritos e bem definidos. Só me dou o direito de acrescentar meu nome como sendo o autor da tradução, mas procuro alterar o mínimo possível. Além disso, tenho o cuidado em todos eles, sem exceção, de comunicar ao editor, ou ao criador do jogo, que estou traduzindo, e que pretendo disponibilizar a tradução ao público, através da internet. É claro que jamais poderei vender aquilo como se fosse meu, sem o prévio consentimento do autor original. Até porque certamente ele já registrou, lá no seu país de origem, todo o trabalho feito, exatamente para evitar que tudo o que fez caia em domínio público. E o mesmo acontece com as minhas traduções, desde que estejam registradas, ou que de alguma forma eu consiga demonstrar que são da minha autoria. Suponha que amanhã surge uma editora nova, que resolve adquirir lá fora os direitos de distribuição de algum jogo aqui no país. O editor então vem até os arquivos da ludopedia e baixa, gratuitamente, uma tradução que esteja aqui disponível para quem quiser, e sem comunicar ao seu autor, faz as impressões, acrescenta isso à caixa dos jogos que comprou lá fora e vende. Ele até tem a autorização da editora original para distribuir o jogo por aqui. Ele até poderia, se quisesse, fazer sua tradução e vendê-la juntamente com o jogo. Mas, ao usar a minha tradução sem a prévia autorização, violou meus direitos sobre o trabalho, e dá margem até a disputas judiciais a esse respeito. Outro detalhe interessante: como as regras não são protegidas pelas leis de direitos autorais, a tradução delas é livre, várias podem coexistir ao mesmo tempo, desde que distintas e identificáveis. Assim é que vemos diversos jogos com várias versões de traduções disponíveis por aí, sem que ninguém nunca tenha reclamado a respeito. E é nesse aspecto que eu digo que as traduções, em algumas oportunidades, assumem até o caráter de obras originais. Eu mesmo traduzi, há um mês mais ou menos, o manual de regras do jogo Splendor, e pretendia postá-lo aqui. No mesmo dia em que terminei a tradução, e criei aqui um tópico para anunciar que publicaria, mandei um e-mail para a editora francesa, comunicando minha intenção. No dia seguinte, recebi uma mensagem da Galápagos, dizendo que havia sido contatada pela fábrica francesa, já que os direitos de distribuição do jogo em território nacional tinham sido vendidos a ela, Galápagos. E no mesmo dia eles publicaram a sua tradução lá no seu site, livre para quem quiser baixar. Mas jamais se opuseram ao meu trabalho, ou à sua divulgação. Eu simplesmente por questão de respeito decidi não publicar a minha, e com a anuência da própria Galápagos postei aqui a tradução deles. Mas a minha ainda existe, é minha, e não abro mão dela, assim como eles não abrirão da deles. Convivem, coexistem pacificamente, porque são trabalhos distintos, apesar de muito semelhantes. Seria muito diferente se eles tivessem usado a minha, que enviei por e-mail, e usado para a venda do jogo, sem que eu soubesse. Ou se eu tivesse descoberto a tradução deles, me apropriado dela e saísse por aí dizendo que é minha, mesmo que eu não vendesse aquilo. Estaria me apropriando indevidamente de um trabalho que não é meu. Então, entendo que não se pode vender o manual traduzido sem a devida autorização, não porque o original seja "obra" defendida pela lei de direitos autorais, mas porque trata-se a ferro e fogo de trabalho derivado de outro que é o original, e que certamente conta com a prévia proteção registrária.