Olha, num primeiro momento imaginei que sua intenção fosse, realmente, somar, acrescentar, possibilitar às pessoas um melhor entendimento das questões, e por isso mesmo me dispus a estender o assunto. Vejo, porém, que não é esse o caso... E, conforme disse no post original, "tergiversações serão solenemente ignoradas". Contudo, por amor à causa, e para encerrar de uma vez, resolvo voltar ao assunto, pela última vez.
Não é subestimar a capacidade de quem quer que seja, simplificar um assunto que as pessoas não dominem. Aliás, constitui-se no grande segredo da boa oratória, trazer o assunto complexo à luz daqueles que não puderam, ou não quiseram, ter acesso às discussões aprofundadas e, muitas vezes, permeadas de termos técnicos ininteligíveis à maioria. Acho que meu texto, apesar de longo, foi bastante claro para todos que se interessaram, tanto que não vi até agora ninguém questionando sua clareza ou precisão. Não fiz rodeios, não enveredei por discussões filosófico-jurídicas, não fiz citações de autores rebuscados, não trouxe à baila qualquer questão que pudesse fugir ao interesse dos leitores. Enfim, usando linguagem que parece agradá-lo, fui infenso ao frívolo curialismo, que se compraz em espiolhar cizânia.
E quando falo em espiolhar cizânia, penso em deixar a você - que me parece até bem intencionado - novamente o ponderado conselho de um velho rato de biblioteca jurídica, que já lecionou em 4 faculdades de direito distintas por mais de 10 anos: não discuta por discutir. Não entre em debates de questões que não domine absolutamente. Não procure ler onde não está escrito. Contenha-se ao falar e escrever, e quando o fizer, meça cuidadosamente as palavras empregadas. Já tive bem mais de uma centena de alunos que apresentavam problemas nesse sentido, e alguns deles, apesar do alerta, persistiram, e tronaram-se péssimos profissionais, porque determinadas posturas não são consentâneas com os louváveis princípios da convivência pacífica. Se não domina o assunto, é amador, é leigo, antes de afirmar qualquer coisa, estude. Mas estude muito! A singela leitura de alguns trechos pinçados de alguns autores, a rasa menção de textos desconhecidos da maioria para apoiar uma tese, ao contrário de passar a impressão de sabedoria, evidencia pedantismo. Leigos não afirmam, questionam. E me desculpe a sinceridade, mas suas palavras não parecem ser de quem é leigo. A forma como escreve, e categoricamente assevera questões, faz parecer que é sim uma autoridade no assunto. Não a mim, que já tenho calo, mas aos olhos alheios, é quase certo...
E já que mencionou ser leigo, amador, mas pelo interesse que demonstra ter, vai aqui uma lição: sua ótica a respeito da questão toda está ligeiramente desviada. Está procurando analisar, sob a luz dos direitos autorais, questões que a eles não dizem respeito. Explico: a lei dos direitos autorais é apenas uma das milhares de leis, e que se refere especificamente aos direitos nela elencados como sendo os protegidos pela sua letra. O mencionado artigo 29 aplica-se, exclusivamente, àqueles direitos, e não a outros. Como o legislador, expressa e indubitavelmente excluiu os manuais e regras da proteção da lei, o que reza o artigo 29 a respeito de tradução não nos diz respeito! Não confunda, repito, "obra" com outra coisa qualquer. A "obra" a que se refere a lei é a tutelada por ela, é a criação artística, é a exteriorização material da psique humana, é a transformação da criatividade do artista em objeto admirável aos olhos e mentes alheias, seja para fins lúdicos ou científicos. E é nesse sentido que a protção recai sobre os jogos de tabuleiro. A mencionada lei não normatiza - e nem poderia - os métodos, técnicas e formas empregadas para tal admiração. As regras do jogo, nada mais são do que conselhos do autor, para que você possa tirar da obra que ele disponibiliza à sua apreciação o máximo proveito que ele imagina. Só isto! E esta é a razão precípua pela qual não poderia mesmo ser protegida pela lei. Imaginemos que eu seja um pintor, que penduro meu quadro em uma parede para apreciação de todos. Imagine que, por alguma razão, a todos que se aproximam do quadro eu recomende que o observem de ponta cabeça, porque aí sim verão a verdadeira expressão artística que tentei retratar. Pense agora que você é um dos visitantes, e que prefere ver o quadro da forma tradicional, sem virá-lo de ponta cabeça. Temos nessa situação todos os elementos: a obra, que é o quadro. Seu autor, que exteriorizou na imagem as fantasias do seu íntimo psíquico. O espectador, que tenta assimilar aquilo que vê, para definir se é ou não para seus olhos. E a regra, o método, que é o conselho para que se veja a coisa de determinada forma específica. Se, ao chegar à sua casa, você resolver repintar aquele quadro, preservando-lhe as características originais, os traços, as cores, as nuances, o tipo de tela e tinta, a pressão dada ao pincel, e depois sair por aí dizendo que a obra é de sua autoria, estará sujeito às sanções da lei de direitos autorais. Evidentemente copiou, contrafez aquela obra, para tomá-la como criação sua. Agora, se você adquire o quadro daquele pintor, e passa a expô-lo aos outros sob sua ótica - que é observá-lo da forma tradicional e não de ponta cabeça como sugeriu o autor, você em absoluto estará violando direito autoral, isso me parece claro! A regra escrita de um jogo equivale-se, em gênero, número e grau à palavra falada do pintor, para os fins dos direitos autorais. Repito: para os fins dos direitos autorais. Para outros fins, existem outras leis, e a própria lei de direitos autorais em determinado momento menciona isto, já que se dispôs a lê-la. E é extamente este o motivo pelo qual recomendo o registro as traduções de regras. Apesar de não serem "obras", e de não estarem portanto protegidas pela lei de direitos autorais, ainda assim são documentos, redigidos, assinados e criados por um indivíduo, que tem direito à proteção legal de seu trabalho. Como disse, não existe apenas uma lei, e certamente disse porque outras se aplicam ao caso. Trata-se, a tradução, assim como o manual no qual se baseou, de um meio para se atingir determinado fim, não exclusivo, mas um dos meios. Como não pode contar com a tutela da legislação que protege os direitos autorais, contará com a proteção de outros mecanismos que existem para este fim. Registrar um documento em Cartório é mero ato de jurisdição voluntária, através do qual você oficialmente comunica ao mundo que, naquela data, naquele local, redigiu aquele documento, na forma apresentada ao tabelião. Só. Isto não transforma o trabalho em obra, mas oficializa documentalmente sua existência.
Quando disse que a tradução poderia até ser considerada trabalho original, e não derivado, não quis em hipótese alguma afirmar isto sem embasamento. Essa foi sim uma divagação, é algo a ser estudado e discutido. É uma tese minha, que estou desenvolvendo e estudando, mas jamais será uma afirmação categórica. Leia direito, e verá que escrevi "poder-se-ia imaginar", o que retira qualquer caráter de afirmação e lança dúvida sobre a afirmação. Nem mesmo eu ainda estou convencido disto, e prossigo estudando. Quando firmar posição, certamente me manifesto, aí com pleno conhecimento de causa. Por enquanto, é elocubração, mas já adianto: o artigo 29 da lei de direitos autorais não se aplica aqui. Por fim , mais uma observação: o manual original é sim, passível de proteção legal, e eu nunca disse o contrário. Ele faz parte do jogo. Se você pegar o livro de regras do Terra Mystica, escanear, abrir em seu computador, e retirar da primeira página a inscrição "A game for 2-5 players aged 14 and up by Helge Ostertag and Jens Drögemüller, e no lugar colocar seu nome, estará violando direitos. Agora, se ao invés disto, manteve o crédito original, trocou o texto em inglês por outro em português, e acrescentou seu nome como tradutor, não violou direito algum, porque ainda atribui a obra - que é o jogo afinal de constas - a quem de direito. E quem fala isso não sou eu não! São os advogados de grandes corporações internacionais! Passeie pelo bgg, ou por outros sites e foruns de jogos pela internet, e verá que existem centenas de milhares de traduções de manuiais de jogos consagrados, para línguas que certamente o autor nunca ouviu falar! E tenha certeza de que as tais empresas monitoram os sites dia após dia, hora após hora, em busca de novidades. Quando a tradução é oficial, os próprios autores dos jogos se encarregam de mencionar isto, e quando não é, permanece postada da mesma forma, com a completa identificação de quem a fez. E não se tem notícia até agora de nenhuma ação, física ou jurídica, de qualquer editora de jogos procurando coibir a prática. Elas têm profissionais de altíssimo padrão para fazerem essa análise, e por que será que nada fazem, então? Porque, em primeiro lugar, ao contrário de violar direitos, as traduções acrescentam, somam, trazem benefícios. E também porque não teriam qualquer embasamento legal para discutir juridicamente a questão.
Certamente existirá quem, apesar de todas as evidências, ainda assim procure questionar e discutir. Mas isto é da natureza humana, o inconformismo está inscrito no coração do homem, e nada posso fazer a esse respeito. O que eu podia fazer - e fiz - era usar um pouco da minha experiência profissional para tentar auxiliar as pessoas no esclarecimento de suas dúvidas, como de resto faço quase todo dia em minha profissão. E acho que, salvo raras exceções, consegui! Aos que aproveitarem meus conselhos, agradeço a honra. Aos demais, lamento, porque são mesmo sinceros, desprovidos de segundas ou terceiras intenções e, acima de tudo, muito pensados e ponderados. E bola no mato...