[Este é um post sobre design, sobre etapas de projeto, mas curiosamente também é um post sobre história. Posts nesta categoria que, no momento, não sei se serão constantes, tem o intuito de relembrar o processo, expor para curiosos e gerar reflexões para quem pretende entrar nesta área de criação de jogos.]
Uma dica valiosa que eu como historiador posso dar é: preserve o que há no presente, para que no futuro seja possível olhar para trás. O historiart, coletivo em que faço parte, esporadicamente trabalha com História oral e empresarial. Buscamos formas de construir narrativas sobre determinados grupos. Nos impressionamos como alguns grupos não tem absolutamente nenhuma documentação sobre seu desenvolvimento. Você quer mesmo que a memória individual seja a única fonte que você terá sobre seu projeto quando precisar olhar para suas lutas, suas conquistas, seus erros e seus acertos? É claro que você não precisa se transformar em um acumulador e guardar cada detalhe, pensamento ou reflexão de qualquer ideia que você tenha, por mais que uma versão saudável disso seja interessante, mas pense comigo, se você inicia um projeto que pretende se dedicar, talvez por anos, é interessante guardar ideias iniciais, anotações, comentários, esboços, referências, etc. Mesmo que as ideias sejam descartadas e substituídas por outras melhores, é interessante que a memória do seu projeto seja preservada. Assim, no futuro, você ou outras pessoas, poderão voltar os olhos para o desenvolvimento do seu projeto e aprender com ele, aprender com o passado. Este post, por exemplo, só foi possível devido a preservação das primeiras ideias e propostas. Além de tudo, a preservação pode servir para você mesmo encarar com satisfação a longa e árdua jornada que o seu projeto fez até sua versão final. Quem sabe as versões descartadas não se transformem em novos projetos? Quem sabe a arte não usada sirva para outros fins? Quem sabe você olhe para a jornada em um momento sem inspiração e perceba que você avançou muito até ali e pode continuar avançando? As possibilidades de uso do passado são infinitas.
Pois bem, após essa breve reflexão sobre a importância da preservação e sobre o uso do passado, vamos ao que interessa para esse post:
- A evolução das mecânicas em conjunto com a evolução da arte.
No início do desenvolvimento do jogo eu ouvi muitas sugestões, sábias por sinal, que em resumo diziam o seguinte: Deixe a arte para depois, primeiro você precisa se concentrar na mecânica, afinal, se a mecânica não funcionar e você precisar reformula-la, talvez a arte precise ser refeita. Em casos mais extremos, toda a temática do jogo talvez precise ser repensada para encaixar melhor na combinação de mecânicas e para tornar seu jogo mais atrativo para os diferentes públicos. Bem, por mais que seja um sábio conselho, não combinava com a proposta do meu projeto. Mas afinal, o que eu pretendia no início?
Todo projeto começa por uma ideia, uma necessidade ou uma inquietação. Eu posso dizer que eu tinha os três. Eu gostava de jogos narrativos, eu gostava da ideia de jogar RPG. No entanto, eu detestava todos os detalhes, no meu gosto pessoal, negativos que vinham junto aos jogos tradicionais do hobbie:
- Criação de personagem extensa
- Regras complexas e com necessidade de ler livros massantes
- Horas e mais horas necessárias para preparar e jogar
- Cálculos que retiravam o jogador da imersão do jogo
- Entre outros problemas que quem joga conhece
Nesse sentido, eu queria continuar me divertindo com jogos de criação de histórias e interpretação de papéis. Eu queria continuar me divertindo em épicas aventuras imaginadas, mas eu não queria perder muito tempo com isso. Eu tinha então um objetivo: Um jogo narrativo rápido, sem preparação, sem cálculos, com imersão e com bastante diversão. Além disso, um jogo com temática histórica que pudesse estimular os jogadores a criar narrativas possíveis de terem acontecido. Assim surgiu a primeira proposta de Aventuras Ancestrais, um jogo de cartas, onde cada carta dispunha de uma palavra, onde jogadores jogavam contra um mestre que dispunha de suas próprias cartas, onde não havia preparação, só disputa narrativa e uso criativo das palavras para formar uma cena de superação com outros jogadores. As cartas tinham apenas ações, mas combinavam com a temática histórica do período paleolítico.
Daí então vieram as ilustrações, inspiradas no sítio arqueológico de Xique-Xique II, no Rio Grande do Norte, os caçadores Cabeça de Caju ilustravam as cartas que não tinham nada além de palavras e imagens. A ideia inicial era que as cartas tivessem apenas imagens, mas como foram feitas palavras para testar a primeira versão e o ilustrador usou das palavras para criar uma imagem para cada, as palavras se mantiveram como sugestões para o jogador. A proposta era mesma, mas agora o jogo estava completo. Ou quase...Paralelamente eu estava desenvolvendo um RPG na mesma temática como um complemento para o RPG Dungeon World. Além disso, comecei a pesquisar outros jogos de cartas narrativos e percebi que era possível criar adaptações de jogos lançados utilizando o mesmo baralho. Daí novas necessidades surgiram: Um baralho que permita diferentes formas de se jogar.
A terceira proposta surge com naipes, cortes e números, como um baralho comum com um pequeno acréscimo. Em algum momento os cortes, o segundo símbolo da carta, representaram a dificuldade da ação naquele primeiro jogo de palavras. Existia uma variante das regras que sugeria o uso das palavras ou das imagens. Não havia obrigatoriedade de utilizar o título delas. Em algum momento da produção se pensou, "porque não substituir as palavras por ideias mais genéricas?" Em vez de criar uma regra que possibilitasse o uso do texto ou da imagem, foram criados textos mais genéricos de situações, cenas ou perigos. A partir daí, o baralho parecia pronto. Então, voltei para a questão: Um baralho que permita diferentes formas de se jogar. Mas afinal, eu tinha algumas adaptações em mente, mas que tipo de jogos narrativos eu poderia realmente criar com este baralho?
Agora é a partir da arte, do layout e dos recursos disponíveis na carta que as mecânicas devem surgir, e surgiram. Daí em diante o jogo foi bastante reformulado. Lembra que falei sobre a importância de preservar os detalhes de seu projeto: Pois bem, uma falha aqui, por mais que é bem possível que eu encontre esta informação perdida em algumas das minhas caixas que guardam fichamentos, cópias de artigos e muitos outros papéis da jornada de um estudante, no momento não tenho qualquer informação sobre quando ou como isso aconteceu: O jogo foi reformulado completamente a partir do baralho final. O RPG que estava sendo desenvolvido em paralelo foi incorporado como modalidade de jogo para o baralho. Os jogos narrativos foram reformuladas e as adaptações também. Tudo graças a forma final do baralho de cartas e da arte inspiradora para o tema. Sem o baralho finalizado, a pergunta que norteia o desenvolvimento dos jogos em Aventuras Ancestrais não seria possível:
Que mecânicas e referências eu posso usar para utilizar dos recursos disponíveis em cada carta deste baralho? Que interpretações eu posso dar para estas cartas para que tenham impactos diferentes na experiência do jogador? Desse modo, os jogos são criados a partir do baralho, dos recursos das cartas e das artes disponíveis, e não o contrário. Com isso, o foco se volta novamente para a pesquisa e para o aprendizado. Novas referências surgem, dentre elas, novas abordagens educacionais, e até o Tarot a partir do olhar do gamedesign. Mas essas já são outras histórias.
E aí, o que achou deste relato e da reflexão feita aqui? Concorda, discorda, nada a ver? Comente. Vamos conversar a respeito.
Este post também está no blog oficial do jogo. Você também pode comentar e contribuir por lá: