Só meus 10 centavos [um pouco longo] de comentário.
Pode parece estranho, até desimportante por demais discutir se mulheres jogam ou não jogos de tabuleiro, mas há aí uma questão de gênero intricada.
E acredito nisso porque a inserção aos espaços se faz a partir de relações de poder, de discursos de normatização que naturalizam certas práticas e da própria tradição que legitima tais discursos e relações de poder, e isso se faz por gerações. O mais delicado e complexo é que o discurso é plástico, ele se transforma, se modifica mas mantem em sua essência o mesmo problema segregador. O que outrora era prática se manterá em outras ações, mas travestido talvez, através da pretensa noção de que é "uma brincadeira inocente não faz mal a ninguém", ou "está na bíblia", ou "o mundo é assim mesmo", e é nesse aspecto que realizamos às inúmeras formas de diferenciar através da exclusão e preterização.
Mas que diabos de discurso é isso que estou falando? São todas as linguagens, práticas e instituições que garantem ou buscam garantir e legitimar um pretenso lugar para a mulher, que pode ser na cozinha, no trato da família, no cuidar de casa, na subserviência do marido [homem diga-se de passagem]. Isto está na igreja, na escola, no trabalho, na universidade, nos cargos de gestão, na política, na sexualidade. Se a mulher for negra, pobre e nordestina, então certos espaços estão mais que legitimados, mas se for gay então, está condenada ao sofrimento de uma vida, pois além de fugir de uma tradição masculinizada ainda corrompe a hétero-normatividade.
Pode parecer fantasia quando dizemos que há uma divisão sexual do trabalho em todos os lugares onde passamos. Se vamos a um churrasco, geralmente o "gerenciamento" da churrasqueira é masculino, para a mulher cabe a louça. Ao dirigir, quem deve conduzir o carro é o homem, como se isso fosse extensão de seu próprio "falo", é a afirmação de um masculinismo sutil travestido de cuidado e gentileza por fazer com que sempre ela fique no conforto do banco do passageiro, apenas observando.
Aparenta ser banal, mas os espaços onde envolvem jogos são lugares com tomadas de decisões que as vezes ultrapassam à mesa, pode revelar por exemplo aquele que explica as regras e tem o poder da fala, mesmo ela presente e podendo fazer o mesmo. Mas também escancara espaço do lazer que sempre foi do homem somando com o direito de tomar decisões e de gerenciar. Quantos aqui não estão jogando enquanto a esposa, a mãe ou a irmã não estão reafirmando essa divisão sexual do trabalho, cuidado por exemplo, da casa?
Enfim, ocupar espaços na jogatina não são apenas uma questão de lazer e diversão, são tomadas de decisões e atitudes perante o mundo. É um afrontamento positivo e resistência à reprodução de práticas e discursos [pois não vejo esse espaço desconexo de outros onde reproduzimos machismo, sexismo e misoginia]. É a redistribuição que não é numérica, mas de qualidade de análise e contexto em certos espaços, é a tentativa de romper com toda uma tradição científica, artística e filosófica e, meu Zeus, como a filosofia contribuiu com a misoginia e o sexismo [Schopenhauer que o diga, "mulheres, criaturas de cabelos longos e ideias curtas"], é, nesse aspecto, a inserção e apoderamento em espaços que sempre lhe foram negadas.
Nisso, discordo muito da frase e do imaginário que "as mulheres jogam acompanhado seus maridos e namorados", ela revela, para mim, apenas o reforço já naturalizado do 'acompanhar as decisões do homem'. Então a meu ver, o espaço do jogo pode parecer ser algo apenas trivial, mas esconde e revela muito de nossas falas, práticas, instituições e espaços onde sujeitos estão ou não inseridos, não vejo tanta diferença da clássica reunião dos amigos no bar após o trabalho, enquanto a esposa está reforçando seu papel de mulher cuidando da casa.