por Lucas Andrade - PUBLICADO EM http://onboardbgg.com/2015/06/18/sobreamesaandroidnetrunner/

Estamos no futuro. Habitamos a Lua e Marte. Bom, Marte ainda está em processo de terraformação, já que uma guerra civil impede que o avanço seja mais rápido. Espalhama-nos pelo sistema solar. Um elevador gigante que alcança a órbita baixa da Terra foi construído em New Angeles, uma megalópolis próxima ao equador. Ele é o centro do comércio da galáxia.Os computadores estão associados à neurobiologia com o mapeamento cerebral. Uma mente humana pode, literalmente, ser armazenada em dispositivos de interface. “Jack in“, como os usuários de elite chamam esta prática.Megacorporações influenciam tudo. Comunicação, artes, carreiras. Jinteki e Haas Bioroid buscam redefinir a vida, desenvolvendo clones com mentes de complexa inteligência artificial. O Consórcio Weyland possui um pouco de tudo que sobe ou desce pelo super elevador. A rede NBN molda o que você pensa e sonha, com a maior rede de comunicação jamais concebida.
Algumas pessoas, no entanto, têm o conhecimento, os recursos ou a vontade de explorar as falhas das redes das megacorporações. Seja para expor as verdadeiras motivações das empresas, suas agendas secretas, para ganhar alguns créditos fáceis ou, simplesmente, porque conseguem. Estes são os runners. Inspirei-me em algumas linhas do manual de Android: Netrunner para apresentar este mundo distópico fascinante apresentado por Richard Garfield nos anos 90 e reformulado pela Fantasy Flight em 2012. Um sucesso estrondoso de crítica e público, atualmente no Top 10 do boardgamegeek.com. O universo Android é oferecido também em outros produtos da Fantasy Flight, como os jogos de tabuleiro Android e Infiltration e alguns livros. Mas é este Netrunner a verdadeira estrela da franquia.

Mecânica
– Alocação de pontos de ação
– Gerenciamento de mão
– Poderes variáveis dos jogadores
– Posicionamento secreto
O grande diferencial de Android: Netrunner é ser um jogo assimétrico. Bem assimétrico, aliás. Os jogadores têm objetivos diferentes, jogam de maneiras diferentes e até o número de ações por turno é diferente. A única coisa em comum é que ambos almejam marcar sete pontos de agenda, os objetivos das megaempresas. Como estes pontos são marcados também é diferente, a Corporação tem de implementar estes pontos; os runners têm de roubá-los. Vamos analisar primeiro as Corporações.
Algumas cartas de Corporação. Note as duas primeiras que são agendas
As agendas são conjuntos de informações dos sistemas da empresa ou objetivos. Existe um custo em implantá-las (avanço) e uma recompensa após estarem prontas (pontos de agenda), às vezes, com outros benefícios. Elas são instaladas em algum servidor remoto e, de preferência, bem protegidas por softwares de segurança (ice). Servidor remoto, firewalls? Hora de dar uma olhada na área de jogo da Corporação.
Todas as pilhas de cartas em Android: Netrunner têm nomes específicos, o que aumenta muito a ambientação da partida. A pilha de compras é o R&D (Research and Development), a pilha de descartes constitui os arquivos (Archives), até as cartas de sua mão têm nome, é o Headquarter (HQ). À esquerda de sua carta de identificação, ou seja, a Corporação que você representa, ficam os servidores remotos. Ao baixar uma carta você automaticamente cria um servidor novo. Você pode colocar quantos deste quiser, até mesmo para enganar o runner, misturando agendas com cartas menos relevantes.
NBN: Uma das Corporações do jogo
As cartas são colocadas inicialmente viradas para baixo, rezzed, usando a gíria de jogo, sem custo algum, por enquanto. Cartas que fornecem benefícios, os assets, têm um custo para serem desvirados, para ficaremunrezzed. As agendas, que a Corporação têm todo cuidado em protegê-las, precisam ser ativadas, nada mais do que ações que o jogador gasta para colocar tokens próprios até o número exigido. Chegando na quantidade exigida, a agenda é implementada e os pontos são marcados. Existem ainda assets que podem ser ativados no intuito de confundir ainda mais o runner.
Mas você não deixará seus servidores, arquivos, R&D e Headquarter desprotegidos. Instale ices para protegê-los. Um ice é uma carta que contém algum software ou dispositivo de segurança. Ela é colocada na horizontal, rezzed, também sem custo na frente de um único servidor. Não há limite de quantos ices você poderá instalar em um servidor. Encha sua agenda de ices e você deixará no runner a certeza de que ali há algo valioso. Deixe-o pouco protegido e seus dados serão presa fácil. Esse é um daqueles jogos em que você nunca consegue fazer tudo que gostaria. Muita informação? Saiba que existem quatro tipos de ice: Sentry, Barrier, Code Gate, e Trap. Nestes programas, encontramos ainda subrotinas que podem complicar a vida do hacker.
Instalando um ice
Vejamos um pouco como é a vida do outro lado do link. Esta é a área de jogo do runner:
Do lado direto da identidade do runner, temos a pilha de compras e a pilha de descartes. Se a Corporação as chamava de R&D e Archives, respectivamente, agora recebem o nome de Stack e Heap, nomes retirados do jargão da Informática. Do lado esquerdo é que a forte assimetria se manifesta mais uma vez. Nada de cartas escondidas e planos para confundir. O runner dispõe de três fileiras de cartas, a saber, Recursos, Hardware e Programas. Os recursos são melhorias de conexão, perícias, bônus de ação ou financeiros etc. O Hardware é o conjunto de ferramentas físicas a serviço do runner. Como destaque temos a carta do tipo console que irá, inclusive, determinar a capacidade de armazenamento de programas. Pode-se instalar quantas peças dehardware quiser, mas apenas um console. Os programas são as ferramentas digitais de invasão, usados para quebrar os ices, tanto que são chamados de Icebreakers.
Algumas cartas de runners. Hardware, recursos, Icebreakers…
Existem outros detalhes e tipos de cartas, mas creio que já foi possível ter uma boa ideia das diferenças de cada jogador. O primeiro turno da partida sempre é do jogador da Corporação que começa comprando uma carta do R&D a cada turno. Deverá depois realizar três ações ou clicks. A cada ação gasta o jogador pode, dentre outras opções:
– comprar uma carta extra do R&D (a pilha de compras);
– ganhar um crédito;
– instalar uma agenda, asset ou peça de ice (normalmente viradas para baixo e sem custo)
– jogar uma operação (nome dado aos eventos da Corporação em Android: Netrunner)
– avançar uma carta (colocar um token de avanço que descrevi acima).
Existem outra opções, mas não as comentarei por questões de brevidade. As ações podem ser feitas repetidamente, desde que o jogador tenha clicks disponíveis.
Ao final, o jogador da Corporação descarta até ficar com seu limite usual de cinco cartas.
O runner, por sua vez, tem quatro clicks para gastar com suas ações. Algumas delas:
– comprar uma carta do Stack (pilha de compras);
– ganhar um crédito;
– instalar um programa, um recurso ou uma peça de hardware;
– jogar um evento;
– executar uma corrida (run).
E chegamos ao momento do confronto e o mais importante de uma partida de A:N. Uma run é uma tentativa de invasão por parte do runner a um dos servidores da Corporação para tentar roubar as agendas da empresa ou eliminar dados e recursos, ou ainda, descartar cartas do oponente. Uma run inicia-se com o runneranunciando qual servidor deseja atacar. Vamos mirar um servidor remoto com dois ices de proteção, ambos ainda rezzed. O que está instalado ali parece apetitoso. O invasor precisa passar pelas duas proteções, de fora para dentro, uma a uma.
A Corporação para ativar este ice, ou seja, desvirá-lo, deixá-lo unrezzed, precisa agora pagar seu custo. Lembre que ele foi colocado na mesa gratuitamente. O jogador pode optar por não o desvirar se quiser, e com isso o runner pode ir direto para o segundo pedaço ou desconectar (jack out). Mas a Corporação tem uma Neural Katana, um ice do tipo Barrier, que pagando seus quatro créditos pode ser desvirada. Ela tem uma subrotina que diz “Provoque 3 de dano de rede”. Nosso apressado e incauto hacker não possui um software Icebreaker capaz de quebrar uma subrotina Barrier, com isso não consegue quebrar a defesa e sofre três danos de rede, ou seja, deve descartar três cartas aleatoriamente. Quando ele tiver de descartar alguma carta e não tiver quantidade suficiente para tal ele é flatlined, derrotado. Em outra situação ele poderia ter um programa para quebrar a primeira barreira, mas mesmo assim teria de encarar o segundo ice. Quem sabe quando ele finalmente chegasse ao servidor a carta poderia mesmo ser uma agenda e com isso o runner marcaria os pontos da carta para ele, o que o aproximaria dos sete almejados pontos e atrasaria os planos da Corporação. Talvez a carta no servidor fosse uma armadilha para provocar dano ou rastrear sua localização. São tantas situações possíveis e combinações de cartas e acontecimentos que é desaconselhável tentar cobrir tudo isto aqui.

O runner Gabriel Santiago tentando uma invasão ao Headquarter da Corporação
Considerações Finais
Você deve estar pensando “uau”! Se estiver mesmo pensando isso, creio que consegui mostrar boa parte do que acontece em uma partida de Android: Netrunner. Há muito mais, mas depois de tantos detalhes, pouparei o caro leitor de mais minúcias. Considero este o melhor card game do mundo, sem discussão. Seu universo é rico, o tema está muito bem aplicado à mecânica e às cartas, ele é extremamente desafiador e sua assimetria garante alta rejogabilidade. Minhas primeiras partidas foram todas de Corporação e quando encarei o lado runner pela primeira vez foi um choque mental. Outro jogo, totalmente diferente. Sério, você se sente perdido nas primeiras rodadas mesmo com horas e horas de jogo no outro lado.

Há tanto a ser explorado aqui, os blefes e a estratégia lado a lado, os diversos runners e Corporações com habilidade e estilos de jogo diferentes, a montagem mais maleável dos decks, que a nova edição de Game of Thrones resolveu se inspirar, maximizar a utilização de suas ações…
É um pouco complexo, detalhista e cheio de expressões próprias, difícil de adotar uma boa estratégia nas primeiras partidas, mas o esforço vale a pena. De todas as caixas básicas do formato Living Card Game daFantasy Flight, modelo criticado por muitos, considero esta a melhor de todas, com muita possibilidade de customização dos baralhos, permitindo dezenas de boas disputas sem apelar para as expansões. Obviamente que, com mais cartas, o jogo vai para a Órbita Baixa com tantas possibilidades, mas você não se sentirá como se um runner tivesse roubado seus créditos bancários com apenas o core set.
Se os jogadores de Magic, o fruto mais famoso de Richard Garfield, soubessem o que estão perdendo…
Pontos Positivos
– Ambientação fascinante
– Tema fortemente implementado, seja na mecânica ou na nomenclatura dos elementos
– Muitas possibilidades de construção de baralhos
– Jogar de runner ou de Corporação são desafios muitos distintos
Pontos Negativos
– O tema é tão presente que pode afastar quem não se agrade dele